Caxias do Sul tem pelo menos 94,8 mil crianças, adolescentes e jovens com idades entre cinco e 19 anos. O número deve ser maior já que o dado oficial é do censo de 2010. Cerca de 20% desse total (mais de 19 mil) vivem em situação de vulnerabilidade social de acordo com o Cadastro Único, que é base para obtenção de benefícios do governo federal, como o Bolsa Família, por exemplo. A faixa etária entre 7 e 15 anos é a maior, em Caxias, considerando dados até 2020, entre as pessoas do Cadastro Único. São 6.850 meninos e 6.463 meninas. Se incluirmos a faixa dos 16 e 17 anos, são 1.263 homens a mais e 1.269 mulheres. E se somarmos os cinco e seis anos, mais 1.714 meninos e 1.576 meninas. Totalizando, 9.827 garotos e 9.308 garotas. Eles fazem parte da população considerada em situação de vulnerabilidade.
Mas não é apenas a questão da renda que leva a essa condição. Para a equipe do Conselho Tutelar da Macrorregião Norte, onde está localizado o maior número de famílias vulneráveis do município, essa condição está diretamente relacionada à exposição de crianças e adolescentes aos riscos, inclusive os oportunizados pelo crime. Em meados de julho, a morte de Iago Dias Tessaro de Araújo, 15 anos, e Vinícius Machado Ribeiro, 16, em confronto com a Brigada Militar, chamou a atenção para as ações que o município desenvolve para evitar que a sociedade perca adolescentes para o crime.
Segundo o Conselho, em parte essa exposição acontece porque existem gaps no sistema de assistência em duas faixas etárias: na infância, entre os 4 e 5 anos, e, a partir dos 16 anos, quando os serviços de convivência e fortalecimento de vínculos não atendem. Para o conselho, o programa Jovem Aprendiz poderia ser uma continuidade na adolescência, mas não absorve a todos.
— Há uma necessidade, no nosso município, de investimento bem antes. A infância fica descoberta. As crianças já ficam um pouco desamparadas porque os pais têm que trabalhar. A dificuldade deles é de estar presentes e é aí que caberia ao órgão público assessorar mais com serviços para não chegar no ponto que chegaram esses casos (dos adolescentes mortos). Precisamos ampliar a rede. Tem-se um gargalo, devido ao número de habitantes em Caxias, na rede de atendimento. Quando o caso chega ao Conselho Tutelar, a criança já está com os direitos violados, está agravada a situação e, nós, apagando incêndios — argumenta o conselheiro Gilmar Ferreira Santos.
Ele é morador da região de Ana Rech e diz que lá existem 13 bairros com 11 escolas e 4.655 estudantes matriculados e nenhum serviço de convivência. O que havia foi fechado em 2017. O conselheiro acredita que um trabalho preventivo ajudaria a reduzir o envolvimento das crianças e adolescentes com o crime.
A prefeitura de Caxias mantém 21 Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos na cidade. A média é de 2.720 crianças e adolescentes atendidos por mês, conforme a Fundação de Assistência Social (FAS). De acordo com a presidente da entidade, Katiane Boschetti da Silveira, o número de atendimentos se manteve durante a pandemia e todos os serviços perceberam aumento das vulnerabilidades nas famílias. A regulação de vagas é feita por territórios, a partir de cada Centro de Referência em Assistência Social (Cras). Atualmente, existem 407 crianças ou adolescentes na fila aguardando para ser atendida por um serviço da rede. Segundo a FAS, não há um tempo médio de espera e essa lista é impactada por troca de turno de escola, troca de bairro, entre outros fatores.
A pandemia também impactou fortemente a relação entre os serviços e os usuários. Samara Bristot, coordenadora do serviço Laços da Amizade, conta que antes da pandemia eram atendidas 60 crianças e adolescentes dos bairros Pioneiro e Pôr do Sol. As atividades presenciais foram interrompidas, em março de 2020, para evitar a disseminação do coronavírus. De lá para cá, o vínculo era apenas virtual por meio de rede social e uma vez por mês na sede para entrega de cestas básicas. Quando foi retomado o presencial, em junho deste ano, apenas 30 frequentadores voltaram. Uma evasão de 50%. Agora, a equipe prepara uma busca ativa dos que evadiram. Outros 30 meninos e meninas aguardam por uma vaga no local.
— Divididos em grupos para não haver aglomeração, queremos chegar a meta toda, de 60 atendidos, novamente — comentou Samara.
No serviço, os alunos participam de dinâmicas e recreações, que desenvolvem a cidadania. Além disso fazem oficinas. Atualmente, é realizada uma de percussão e está para começar uma de capoeira e de dança, associadas à percussão, e outra de futebol.
— Todo mundo deveria ter acesso à educação e a um serviço de convivência. Só que na realidade isso não acontece. Estamos correndo atrás, tentando encaminhar para serviços, mas precisa de algo muito maior, de investimentos na educação, na base, na ampliação de serviços. Se não, vai resultar em ampliação de Case (centro de atendimento sócioeducativo) e construção de presídios. Se ninguém acolhe, se ninguém dá uma assistência, a rua vai acolher — reforça o conselheiro Josué Orian da Silva.
O delegado Caio Ribeiro atuou na Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), em Caxias, até o ano passado. Desde então, está na Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) e, durante as investigações, infelizmente, continua deparando com casos que têm adolescentes como protagonistas de crimes graves contra a vida. Ele acredita que a pandemia interferiu na atenção a esse público:
— A rede de proteção deixou de atuar com todo o potencial que que lhe é peculiar. Os braços da rede deixaram de alcançar e de envolver esses jovens que são mais vulneráveis, tanto socialmente quanto do ponto de vista psicológico. Porque muitos jovens que ingressam para vida do crime vêm de famílias estruturadas mas buscam autoafirmação ou a "emoção" — opina referindo que um acompanhamento psicológico no âmbito escolar poderia detectar casos que precisam de mais atenção.
Uma das ações da Polícia Civil que tinha papel social de ajudar na prevenção também foi interrompida pela pandemia. No projeto Papo de Responsa, semanalmente, a equipe da DPCA ia até escolas e em atividades de turno inverso ao escolar conversar com os adolescentes. A ideia, segundo o delegado, era fazer com que percebessem que o "envolvimento com o crime não leva a lugar nenhum, se não à cadeia ou ao cemitério". Além disso, coloca em risco e traz consequências aos familiares e amigos. Recentemente, o irmão de um adolescente infrator que não tinha relação com o crime acabou sendo morto junto com ele. Para o delegado, para além do trabalho de assistência, os adolescentes têm responsabilidade sobre as escolhas que faz.
— Não podemos só conferir responsabilidades a terceiros. Temos que considerar elementos e influências externas, mas não podemos esquecer o fator determinante que é a postura e a vontade individual de cada pessoa — conclui.
Dados
:: No primeiro semestre deste ano, 22 adolescentes ingressaram no Centro de Atendimento Socioeducativo (Case) em Caxias em cumprimento de medida privativa de liberdade por atos infracionais cometidos, menos da metade do que em todo 2020, quando foram 50.
:: Mas, em alguns atos houve aumento expressivo, como latrocínio que teve três internações até junho deste ano e apenas uma no ano passado. Em alguns atos infracionais, a média mensal também cresceu como tráfico de drogas, com cinco internações nos 12 meses de 2020 e três nos primeiros seis meses deste ano.
:: Já os internados por homicídio se mantém na média, com seis neste ano e 12 em 2020.
:: É preciso considerar que os dados de 2020 foram menores do que os de 2019 em todos os atos infracionais, exceto feminicídio, que teve três internações, quando não houve registros em outros anos desde 2016.
Fonte: Secretaria da Justiça e de Sistemas Penal e Socioeducativo (SJSPS)
Adolescentes mortos em confronto com a BM tinham perfis diferentes
Iago Dias Tessaro de Araújo, 15 anos, foi enxergado. A família era acompanhada pelo Conselho Tutelar da Macrorregião Norte desde 2009, tanto ele quanto outros irmãos. No caso do adolescente, havia registros de problemas de frequência escolar. O menino foi encaminhado para atendimento psicológico no serviço Apoiar, que presta assistência especializada a crianças e adolescentes e as famílias deles, e para o Serviço de Fortalecimento de Vínculos Ação Social Murialdo, no bairro Santa Fé, onde ele morava. Com apoio da família, que trabalhava com reciclagem e tentava reduzir o tempo do garoto na rua, ele iniciou as atividades no local em março de 2018. Praticava esportes, fazia oficinas de circo e de teatro. Atualmente, estava matriculado no 9º ano do Ensino Fundamental na Escola Municipal Angelina Sassi Comandulli.
— As atividades têm foco de desenvolver valores, para conhecerem a cultura e utilizarem as atividades como estratégia de mudança de comportamento e de atitudes. Para entenderem que podem mudar a vida deles, buscar mais e ser mais — ponderou o educador social.
Conforme a equipe, se relacionava bem com todos, mas seguia tendo problema com a frequência.
— Para nós todos, foi um choque, porque ele tinha um jeito todo espontâneo, brincalhão, comunicativo — comentou a coordenadora do serviço.
A interrupção do serviço de forma presencial por causa da pandemia foi um golpe muito duro na vida de Iago e de centenas de adolescentes. A equipe não teve contato direto com os alunos e manteve ações online em todo 2020 e de maneira híbrida neste ano. O último contato com o menino foi antes do Dia das Mães, para que ele buscasse uma atividade no serviço, mas ele não apareceu.
— A preocupação grande é essa, com a escola e o serviço fechados por causa da pandemia, nossas crianças e adolescentes estão muito expostos. Estão na rua o tempo todo, porque as famílias não conseguem mantê-los trancados em casa. Eles acabam se envolvendo, se perdendo com muitas outras dificuldades — disse Josué Orian da Silva, conselheiro tutelar da Macrorregião Norte.
Em algum momento, na breve história, Iago se envolveu com as drogas ilícitas. Chegou a ser encaminhado ao Centro de Atendimento Psicossocial (Caps), mas não chegou a ir. Os pais também chegaram a mudar para área rural do município na tentativa de afastar o filho do mundo do crime.
Vinícius Machado Ribeiro, 16 anos, não era atendido pela rede de assistência. Aos 10 anos ele ingressou na escolinha do Juventude, onde ficou até os 14.
— Quando ele chegou aqui, acho que, a mãe dele já buscava preencher algo. O futebol, muitas vezes, as pessoas procuram como forma de trabalhar a disciplina — comenta Jonas Rosa, coordenador da escolinha, referindo que o menino não tinha presente a figura paterna.
O garoto passava muito tempo no clube, convivia com os atletas de outras categorias e era ajudado por alguns do profissional que pagavam lanches e refeições. Um jogador mencionou que, por vezes, o menino chegava de manhã e só saía à noite. Sobre a personalidade, tinha carisma para fazer amizades, mas poucos limites e carência de atenção.
— Quando soube do que aconteceu, me senti um pouco culpado, porque ele já dava sinais de que precisava de ajuda. Ele demonstrava que tinha muita carência dentro dele, no sentido afetivo, do pai. Porque toda hora ele buscava limites. E ele tinha respeito. O problema dele era estrutura familiar, ele não tinha hora. Às vezes, era 21h e ele estava no estádio. Ele faltava aula e vinha para o clube. A mãe era dedicada no sentido de dar as coisas para ele — descreveu Rosa, referindo que cerca de 200 crianças são atendidas pelo departamento social do clube para atividade de futebol, com financiamento da lei de incentivo estadual, mas falta um encaminhamento desses adolescentes após a idade limite que é de 14 anos.
Sem vocação para desenvolver uma carreira como jogador, ao completar 14, ele teve que deixar a escolinha. Aí, entrou para a torcida organizada Mancha Verde. Ele estudava na Escola Estadual de Ensino Fundamental Abramo Eberle.
Tanto Vinícius quanto o Iago eram conhecidos pela Polícia Civil por passagens como infratores. Estavam juntos em uma moto na localidade de São Jorge da Mulada, onde, no dia 17 de julho, ocorreu confronto com a Brigada Militar. Vinícius tinha mais de 10 registros por atos infracionais, como lesão corporal, roubo e tráfico de drogas. Ele também era investigado como participante em um homicídio cometido em 2019. No dia anterior à morte dele, o delegado da Homicídios, Caio Ribeiro, teve uma reunião com Ministério Público para alinhar pedido de restrição de liberdade.
— O que dificulta um pouco a internação do adolescente é que a restrição de liberdade é uma medida extrema pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, a critério da Vara da Infância e da Juventude. A polícia tem trabalho mais limitado nessa ceara. Uma coisa é suspeita, outra coisa é o que efetivamente conseguimos provas — comentou o delegado.
Ribeiro diz que nem sempre é possível reunir as provas necessárias e que, no caso do Vinícius, isso acabou ocorrendo no mesmo momento em que a investigação sobre outros crimes se desenvolveu e nos quais a polícia investiga também participação de Iago. Esse trabalho ainda é mantido em sigilo pela polícia. O pedido de internação de Iago também já estava sendo articulado, conforme o delegado.
Esporte é ação importante para afastar do crime
Na região norte de Caxias, está o Complexo Esportivo da Zona Norte, um centro criado para desenvolver atividades com crianças e adolescentes não só daquela região, mas, principalmente. De acordo com o secretário do Esportes e Lazer, Gabriel Citton, ele chegou a ter diversas práticas esportivas desde a construção, em 2013, até 2016, como futebol, handebol e judô, inclusive com transporte de mais de 100 estudantes das escolas até o local no contraturno escolar. Em 2017, o transporte foi suspenso, dificultando e, por vezes, inviabilizando o acesso de crianças e adolescentes ao lugar. Em 2020, com a pandemia, as atividades foram interrompidas. O complexo foi revitalizado e, neste ano, aos poucos, conforme a liberação das restrições impostas pela pandemia, as modalidades serão retomadas. Os profissionais já estão disponíveis.
— Agora, é um trabalho de formiguinha que teremos que fazer para todo mundo comece a voltar para aquele complexo. Acho que o esporte ainda é a melhor ferramenta para tirar o pessoal da rua — avaliou Citton.
Algumas atividades podem ser desenvolvidas nas sedes das escolas no turno inverso. Em outras situações, as crianças voltarão a ser transportadas, segundo Citton. Para ele, será preciso que as escolas também trabalhem no convencimento dos alunos para irem ao complexo. Nos mesmos moldes, a prefeitura pretende retomar ainda, no outro lado da cidade, no loteamento Vera Cruz, no bairro São Caetando, atividades esportivas como futsal, handebol e badminton com crianças e adolescentes no turno inverso ao da escola, no ginásio novo.
Além disso, o Campos da Serra terá uma escolinha de futebol por meio de um projeto do Esporte Clube Pedancino com recursos do município do Fiesporte. A verba já foi liberada e as atividades devem começar em breve.
— Quando a prefeitura não consegue por meio dela mesma, pelo Fiesporte ela tenta estimular as pessoas a fazerem com o dinheiro do município — pondera o secretário, referindo que qualquer entidade ou associação de bairro pode encaminhar projeto para pleitear o financiamento, que dispõe de mais de R$ 1 milhão.
Prefeitura admite gap de assistência na adolescência e busca ampliar serviços
A Fundação de Assistência Social (FAS) diz que o plano plurianual da entidade prevê a criação de mais dois serviços de convivência na cidade. Contudo, segundo a presidente da entidade, Katiane Boschetti da Silveira, a situação orçamentária do município é delicada. A alternativa encontrada é atuar em parceria com as secretarias de Educação e de Esporte e Lazer com projetos para atender a demanda.
Katiane diz que, mesmo com as dificuldades enfrentadas, dados da FAS apontam que houve redução do número de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto. Em cinco anos Caxias passou de 231 (em 2015) para 80, em média, em 2020. Mesmo se considerar os dados de 2019, quando os prazos processuais do judiciário não tinham sido afetados pela pandemia, a redução foi de cerca de 50%, refere a gestora.
— Caxias é referência na garantia de direitos da criança e do adolescente , tem uma rede muito forte, mas, mesmo assim, algumas situações acontecem e temos adolescentes se envolvendo nessas situações (de crime). O que pode levar a isso é a questão das relações familiares, quando as famílias são envolvidas no crime é uma situação muito desafiadora para a rede. Também a evasão escolar, por isso, toda a dedicação da Educação junto com a Assistência Social na busca ativa das crianças e adolescentes fora da escola. Além, disso as remunerações ligadas ao crime são muito atrativas faz com que tenhamos esses adolescentes saindo das escolas e evadindo dos serviços de convivência. Esses pontos fomentam que os jovens acabem entrando para o crime — ponderou Katiane.
A presidente refere outras ações do município, como o Programa Infância Melhor (PIM), desenvolvido em Caxias desde 2005, e o Criança Feliz, desde 2017, de acompanhamento de famílias em situação de vulnerabilidade. Ambos são políticas públicas intersetoriais, entre Assistência, Saúde e Educação, que atendem crianças de zero a seis anos. Foram atendidas 6.542 famílias e 7.458 crianças e 93 comunidades do município. Em 2021, foram 510 famílias, 570 crianças em 47 comunidades. A prefeitura também está implementando o Programa P, em parceria com o Instituto Pró Mundo, que se soma aos anteriores trabalhando a questão da paternidade.
— A partir dos 15 anos, quando (adolescentes) saem dos serviços de convivência, nós temos esse gap. Eles ficam acompanhados pelo PIM e Criança Feliz até os seis anos e, dos seis em diante até os 15, eles ficam nos serviços de convivência, e existe esse gap. Por isso, lançamos o projeto Ser Jovem Cidadão, que é a continuidade desse acompanhamento com os jovens, é olhar para Assistência Social como espaço de emancipação social. A partir desse olhar que vamos poder oportunizar diferentes espaços para esses jovens que não os espaços que, hoje, o crime vem ofertando. Além de propositivas, que eles instiguem os jovens a estar conosco. Os programas de Jovem Aprendiz são atrativos, têm salário, são vistos, têm uma profissionalização. O programa Ser Jovem Cidadão vem dessa forma. Além disso, o Conselho Municipal da Criança e do Adolescente custeia três programas de aprendizagem com 289 vagas. Então, existe esse gap mas o poder público está fazendo investimento para saná-lo — conclui Katiane.