O recente surto de covid-19 no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) trouxe à discussão novamente as condições de trabalho e de atendimento nos ambientes de saúde de Caxias do Sul. Profissionais de hospitais e unidades de saúde questionam a procedência de equipamentos de proteção individual (EPIs) e relatam excesso de uso de alguns itens, descrevem utilização de camas para descanso por mais de um profissional sem troca de lençóis e falta de distância mínima entre pacientes. Esses procedimentos colocam em risco as equipes e as tornam possíveis transmissores para colegas, pacientes em geral e as pessoas que mantém contato com elas.
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Na tarde desta segunda-feira, a reportagem percorreu os seis hospitais da cidade e as duas unidades de pronto-atendimento (UPAs). Não foram verificadas aglomerações nos hospitais nem nas recepções para pessoas em geral ou nas áreas para casos suspeitos de covid-19.
Ao contrário, as recepções estavam praticamente vazias e, naqueles em que haviam pessoas no lado externo, eram acompanhantes que aguardavam a realização de exames ou algum procedimento. Isso foi verificado também em duas clínicas na área central.
O cenário era diferente nas UPAs. Na unidade da Zona Norte, havia cerca de 20 pessoas aguardando atendimento nas cadeiras e na parte externa do prédio. Pelo menos duas reclamaram que esperavam há mais de seis horas por uma consulta. Na UPA Central, mesmo com cadeiras espaçadas, o ambiente estava cheio e havia aglomeração na porta de acesso à unidade e na escadaria. O longo tempo de espera para casos avaliados como sem gravidade não é novidade nas UPAs. Para pacientes e profissionais, o problema é a relação entre o tempo de exposição dessas pessoas e o risco de contágio que um ambiente hospitalar ou de saúde oferece, por mais cuidados que as administrações tenham.
A infectologista Giorgia Torresini diz que esses locais podem ser de contágio maior quando não existem EPIs adequados e quando falta treinamento para a equipe.
– A contaminação é maior quando existe o descuido. Não consigo vincular o local de trabalho com maior contágio, quando existe EPIs adequados e equipe bem treinada. Vemos a contaminação quando se sai desses locais para fazer a hora de repouso ou tomar um café com um colega, porque ocorre a retirada dos EPIs e não observância do distanciamento – ponderou a especialista.
Sem entrar em detalhes, a diretora da Sociedade Brasileira de Infectologia que atua em Caxias, Lessandra Michelin, também afirma que esses locais de saúde não são pontos de maior contágio:
– São locais de possibilidade de maior exposição ambiental, mas não de contágio.
Já a infectologista Viviane Buffon diz que "todas as unidades de saúde são potenciais para contágio" e que, "com o aumento de casos de covid-19, qualquer ambiente relacionado à assistência à saúde deve ser evitado por crianças, idosos, imunossuprimidos e pessoas com doenças crônicas."
Profissionais apontam riscos
Profissionais que atuam em diferentes cargos na área da saúde relataram situações que consideram de risco tanto para as equipes quanto para pacientes. Eles preferiram não se identificar por medo de represálias, por isso, não terão os nomes divulgados.
Um profissional diz que na UPA Zona Norte equipes diferentes fazem o atendimento de pacientes que tenham sintomas respiratórios e que é fornecida toda a paramentação para tal. Segundo ele, por vezes há aglomeração de pacientes tanto na recepção quanto na tenda, em função de ser apenas um médico para atender em cada local durante o dia. À noite, há reforço. Já a ocupação de leitos tem sido baixa ultimamente.
Na UPA Central, os relatos retratam o temor dos servidores: os mesmos profissionais alternam atendimento na área covid e em setores para os demais pacientes em um mesmo turno de serviço; no tempo de descanso, eles se revezam nas camas destinadas aos funcionários sem que haja troca de lençóis ou fronhas; o quarto é pequeno e os móveis ficam próximos uns dos outros.
– A gente mal levanta, já tem um colega esperando para deitar na mesma cama. Feliz do que deita primeiro e coitado do que deita por último – comentou.
A disposição das cadeiras onde os pacientes recebem medicação também não respeita a distância indicada para evitar o contágio, segundo o profissional, que apresentou fotos comprovando o relato. Em uma delas, uma paciente sem máscara é atendida:
– A sala de medicação é pequena, tem 10 poltronas, uma ao lado da outra, não tem distanciamento entre os pacientes. Por muitas horas, a sala fica cheia, e mais os técnicos e enfermagem... as vezes, estamos em 15 dentro de uma sala sem janela. Não se sabe se a pessoa que chega para ser medicada está com dor ou suspeita de covid ou com covid positivo.
Na área destinada à covid-19, segundo o funcionário, há pacientes confirmados junto com suspeitos.
– O paciente contaminado está junto com alguém que talvez não esteja. Só fazem teste rápido em último caso – relatou o profissional.
Um profissional da saúde diz que no hospital em que trabalha a mesma equipe (enfermeiras, técnicos e médicos) atende nas consultas normais e no setor respiratório e, eventualmente, se formam aglomerações na recepção, onde os pacientes esperam por consultas e exames, principalmente, no início do mês. Há queixa também em função da qualidade e excesso de tempo de uso dos EPIs: as máscaras fornecidas precisam ser reutilizadas por 30 dias e não têm selo do Inmetro que valida que o equipamento cumpre as especificações técnicas e normas de segurança.
– Recebemos um avental de tecido por dia que temos que reutilizar, correndo risco de nos contaminarmos – comentou o profissional.
Entidades que representam servidores demostram preocupação
A Comissão de Saúde da Câmara de Vereadores e o Conselho Municipal de Saúde disseram que não receberam denúncias sobre as condições de trabalho nos locais de saúde. Já a presidente do Sindisaúde, que representa os trabalhadores do setor, Bernadete Giacomini, demonstra preocupação:
– Os trabalhadores estão muito apreensivos e angustiados diante de muitos profissionais contaminados e a ansiedade só piora. Nos preocupa muito no sentido que hoje os profissionais não querem mais ficar na área e, com isso, a mão de obra ficará comprometida e a população sem assistência. Os empregadores estão vendo estratégias de evitar um colapso no sistema.
O Sindicato dos Servidores Municipais (Sindiserv) emitiu nota nesta segunda-feira dizendo que está investigando o surto no Samu e que as contaminações envolvendo os servidores devem ser encaminhadas por meio de Comunicações de Acidente de Trabalho (CAT) e serão avaliadas por perito do Serviço de Segurança do Trabalho.
– Neste patamar em que as transmissões são comunitárias fica difícil dizer em qual local se contaminou. É muito provável que seja no ambiente de trabalho, visto que é onde permanecem por maior tempo e com contato direto com pacientes – declarou Silvana Pirolli na nota.
A entidade diz foi elaborado um protocolo para o enfrentamento do novo coronavírus que está sendo cobrado do Executivo, que todas as ações são para minimizar a transmissão entre os servidores e que os casos que chegam ao sindicato são acompanhados.
O Sindiserv vai dispor outdoors nos acessos da cidade defendendo os trabalhadores da área da saúde.
– É uma luta constante por mais testes e EPIs e isso não seria necessário se tivéssemos políticas que priorizassem os cuidados com quem está na linha de frente. Quem vai perder com a falta de profissionais no Samu? A população – constatou Silvana.
O que dizem as administrações:
:: A administração e coordenação de enfermagem da UPA Zona Norte disse que o movimento é maior nas segundas-feiras. Que a classificação de gravidade indica a ordem de atendimento e que pacientes graves têm prioridade.
:: Sobre o Samu, a Secretaria Municipal de Saúde diz que a medida mais recente foi o recolhimento dos utensílios de cozinha para não serem compartilhados (cada um trará os seus talheres), mas que há algumas semanas já tinham sido espaçadas as mesas no refeitório para ficarem com 1,5 metro de distância uma da outra. Foi reduzida a circulação de pessoas no local, retiradas cadeiras e poltronas para que não fiquem muitas pessoas no mesmo ambiente. Nos dormitórios, em abril, as camas já tinham sido revestidas com plástico para facilitar higienização e agora foram retiradas algumas e espaçadas as demais.
:: Sobre a UPA Central, a SMS diz que as camas de repouso são em número menor que os profissionais, inclusive os espaços dos repousos são pequenos. Logo, sim, são utilizados por mais de um profissional, e que é orientado a eles solicitarem roupa de cama na rouparia e realizarem a troca. Na sala de medicação são atendidos somente pacientes não suspeitos de covid-19. Os pacientes suspeitos são direcionados para a observação covid, já que a UPA possui fluxo separado para covid e não covid e todos os pacientes usam máscara cirúrgica e mantêm o distanciamento recomendado pelo Ministério da Saúde. Os colaboradores das áreas covid ficam trabalhando nestas áreas durante o turno todo.