Pela primeira vez em mais de 20 anos de profissão, o professor do Departamento de Bioquímica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador da área de Biomedicina, Fabio Klamt, 44 anos, faz parte dos estudos que está acostumado a analisar. Entusiasta da infusão de plasma convalescente para tratar pacientes infectados com o novo coronavírus, ele se tornou o doador da primeira transfusão realizada no RS. O porto-alegrense, que foi infectado em março, venceu a covid-19 e se dedicou a pesquisar métodos eficazes e seguros para combater a doença. Em 25 de maio, ele esteve no Hemocentro Regional (Hemocs), em Caxias do Sul, onde doou plasma de sangue. No dia seguinte, um paciente de 63 anos, que está internado na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) do Hospital Virvi Ramos recebeu a doação:
— Para mim é curioso ser o primeiro doador de plasma convalescente no Estado. Não era para ser eu, mas o primeiro que doou não era compatível com o paciente e, agora, pela primeira vez além de estudar e pesquisar, sou parte da pesquisa, virei agente dela — conta Klamt.
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Ele sentiu os primeiros sintomas de covid-19 em 15 de março. Foi internado, encarou uma pneumonia e não usou respirador por decisão da equipe médica, mas já estava com a saturação em 90, sendo que o limite para usar oxigênio é 93. Quando teve alta do hospital, depois de seis dias internado no Hospital Moinhos de Ventos, o professor ficou isolado no apartamento dos pais dele, que está vazio, para não contaminar a família. O primeiro passo foi revelar nas redes sociais que ele havia sido contaminado:
— As pessoas olham números e estatísticas e não conseguem absorver o impacto da doença, não distinguem, então eu fiz questão de dar um rosto aos números. Não faço parte do grupo de risco. Tenho 44 anos e fiquei mal a ponto de ser internado, e era preciso compartilhar e mostrar que passei por isso para as pessoas.
Nesse tempo de isolamento, o professor recebeu a ligação de um colega da Food and Drug Administration (FDA), a agência norte-americana de vigilância sanitária, que lançou o apelo: "Fábio, agora que você está recuperado, considera doar o teu plasma". A partir da dica do colega, ele começou a reunir material sobre o assunto.
— Em 24 de março, a FDA já havia liberado o procedimento nos Estados Unidos, e quando a agência americana autoriza o uso de determinada técnica, a maioria das agências do mundo segue o mesmo padrão. Tanto que no Brasil a Anvisa autorizou a doação de plasma em 4 de abril. Claro que as agências chamam a atenção para o fato de ser um método experimental e que requer comprovação de segurança e eficácia, mas hoje é a melhor alternativa — explica.
"Havia um paciente internado esperando minha doação"
Analisando as pesquisas que mostram os resultados do uso do plasma, Klamt passou a reunir comprovações científicas para encaminhar a colegas de hospitais de Porto Alegre, da Serra gaúcha, de São Paulo e do Rio de Janeiro. Também encaminhou materiais para os secretários de Saúde de Porto Alegre e do governo do Estado. A divulgação do assunto também era intensa nas redes sociais.
— Caxias do Sul transformou a iniciativa em realidade. Eu insisti para que um hospital da capital aplicasse o método porque a literatura científica mostra que esta é a opção que temos atualmente, mas até o momento não fizeram isso. A Serra tornou real — exalta o professor.
Uma ex- aluna escreveu para o pesquisador e mandou uma notícia sobre o recrutamento de doadores pelo Hemocs de Caxias. Como queria doar plasma, Klamt entrou em contato com o serviço caxiense em maio. Soube então que a sua característica e o tipo de sangue poderia ajudar um na cidade.
— Era real, estava acontecendo porque havia um paciente internado esperando a minha doação. Foi rápido porque contatei eles entre os dias 19 e 20 de maio e na sexta-feira, dia 22, fiz os exames. Na segunda, subi a Serra novamente para doar o plasma porque o outro doador não era compatível e, no dia 26, às 23h30min, aconteceu a primeira e única, até o momento, transfusão de plasma no RS.
No dia da doação, Klamt não conseguiu dormir:
— Sentia um misto de expectativa e ansiedade, que segue até agora, uma espera de que o paciente melhore. Tenho acompanhado o estado de saúde, torcendo muito pela recuperação dele, aguardado uma resposta positiva e esperando o sucesso da transfusão. A melhora dele será um marco, um incentivo a outras doações, uma esperança — afirma o pesquisador.
Terapia de primeira escolha
Um dos desafios para vencer o coronavírus é a falta de medicamento ou vacina que possa conter a infecção. Para Klamt, a transfusão do plasma é a primeira escolha na tentativa de salvar vidas.
— Não basta ser eficaz, é preciso ser segura, e estudos comprovam a segurança e a eficácia do procedimento. Enquanto não tiver uma vacina ou um remédio, o plasma convalescente é a maneira de tratar a covid-19. É a terapia de primeira escolha — aponta.
O professor lembra que há centenas de pessoas na mesma condição que ele no RS: superaram o vírus, estão recuperadas e podem ser doadores de plasma. Para ele, a informação precisa chegar também aos médicos para que se sintam seguros em efetuar o procedimento:
— A abordagem é relativamente barata, rápida e utiliza a estrutura já estabelecida e amplamente espalhada pelo país que são os bancos de sangue. É simples: recruta doadores, coleta o plasma, testa a coleta e estoca o plasma. Nós temos que recrutar essas pessoas, chamar esses pacientes que se recuperaram para doar plasma — alerta.
Estudos apontam eficácia e segurança
Além de autorizar o uso de plasma convalescente para o tratamento da covid-19, tanto para estudos clínicos quanto para o uso emergencial no tratamento de paciente único, a FDA também preparou um guia para uso. A Alemanha, Itália e Reino Unido também liberaram o uso do método como forma emergencial para pacientes graves.
O pesquisador reuniu literatura científica, com métodos e estudos comprovar que é uma alternativa para combater o vírus. O método do plasma convalescente não é novo. Ele já foi usado em outras epidemias como a gripe espanhola e também foi aplicado mais recentemente — e com sucesso — em pacientes com Sars, H1N1 e ebola, entre outros surtos:
— O plasma convalescente sempre vem à tona quando surge uma nova doença, porque ele se baseia na imunização passiva. Isso significa que a pessoa que está recuperada produz anticorpos e isso circula no plasma deste paciente, então a ideia é recolher esse agentes imunizantes e fazer a transfusão para quem está em estado grave.
O professor frisa que estudos mostram não apenas a eficácia, mas a segurança da transfusão do plasma convalescente em casos de coronavírus. Ele está redigindo um artigo com comprovações sobre o assunto. Nos Estados Unidos, um estudo com cinco mil pacientes que receberam a doação aponta que menos de 1% deles apresentou efeitos colaterais. Esses sintomas estão mais associados à transfusão do plasma do que a covid-19.
— Os estudos comprovam que o plasma é eficiente em diminuir a carga viral, controla a inflamação e também em melhorar sintomas clínicos. Esse estudo se chama metanálise, que é quando reunimos outros artigos para corroborar uma ideia, e tais trabalhos, mostram que há melhora no quadro do paciente. Avaliamos a condição clínica do paciente antes de receber o plasma e depois para constatar se ele estava em ventilação mecânica e saiu, se estava internado e teve alta, por exemplo.
Nos Estados Unidos, mais de 10 mil pacientes já receberam o plasma, sendo que há resultados de cinco mil. Ainda não há dados de todas as transfusões.
COMO FUNCIONA
A hematologista e intensivista, Letícia Castro Becker, explica que o procedimento consiste na infusão do plasma de sangue de um paciente recuperado para um paciente infectado.
— O plasma é a parte que contém os anticorpos. Ele é retirado de pacientes que tiveram contato com a doença. Se extrai uma quantidade calculada, conforme o peso do paciente, e em seguida o plasma é testado e, se compatível, fazemos a infusão no paciente doente.
No Hemocs, há um equipamento, onde o paciente entra e ocorre a seleção do plasma sanguíneo. O processo, chamado de aférese, consiste em retirar o plasma do sangue do doador com a separação de componentes e retenção apenas da porção que se deseja usar, além de devolver os demais componentes a quem estiver doando ou recebendo o sangue.
— Não é uma doação de sangue normal, o plasma é mais purificado e o paciente não fica com sintomas, como na doação de sangue. Retiramos em torno de 400 a 600 ml do plasma. Também não é uma transfusão normal, é uma infusão com anticorpos, que estão aptos a combater o vírus naquela pessoa doente enquanto a imunidade dela não é capaz de reverter a situação.
A médica explica que a compatibilidade sanguínea é a mesma utilizada para doação de sangue: respeitar o sistema ABO e Rh.
— Todos que tiveram contato com a doença podem doar, mas medimos a quantia de anticorpos porque precisa estar alta. Sabemos cientificamente que é um procedimento seguro porque há estudos que comprovam, o que está em pesquisa ainda é quanto ele é eficaz contra a covid-19. Em breve teremos os resultados de outras pesquisas para ampliar o procedimento — finaliza.
Depois da coleta, o plasma é tipado para o Sistema ABO e Rh. Em seguida, ele é testado para identificar a presença de outras infecções, como HIV, HPV e hepatite. Depois é separado, além de avaliado duas vezes quanto à presença da covid-19, por método molecular, para comprovar que o doador não tem mais o vírus ativo, mas apenas os anticorpos. Após todos os testes, o plasma é infundido no paciente que é compatível.
Ao contrário de doar sangue que exige um intervalo de dois meses entre cada doação para os homens, e de três para as mulheres, o plasma pode ser doado a cada 72 horas. O ideal, contudo, é que as doações sejam de 15 em 15 dias para garantir a presença necessária de anticorpos no organismo do paciente recuperado.
DOAÇÕES DE PLASMA DE SANGUE
Quem quiser doar pode agendar atendimento no Hemocs pelos telefones (54) 3290-4543 e (54) 3290-4580 ou pelo WhatsApp (54) 98418-8487. São recebidos homens, de no mínimo 18 e no máximo 60 anos, que tiveram a doença confirmada por meio do teste PCR e estão há mais de 28 dias recuperados.
Por que só homens? O entendimento de médicos é de que mulheres podem apresentar riscos de produzir anticorpos contra as células de defesa por conta de períodos férteis e gravidez ao longo da vida e, por isso, inicialmente, os testes são feitos apenas com homens.