Já são 40 mortes por covid- 19 na Serra, mas essas vidas perdidas não podem ser avaliadas apenas pelos números. A pandemia levou embora homens e mulheres que lutaram por suas famílias, contribuíram de alguma forma para suas comunidades e ainda tinham muitas histórias para contar. A partir desta quarta-feira (3), a trajetória de quem perdeu a luta contra o coronavírus será mostrada pela reportagem. As famílias das vítimas aceitaram abrir seus corações para mostrar que a situação atual é muito séria e exige ainda mais responsabilidade e empatia.
Os ensinamentos de EDY
Neta de Carlos Fetter, um dos responsáveis pelo desenvolvimento de Farroupilha, Edy Fetter Georg, 92 anos, não superou o enfrentamento contra a covid- 19. Morreu no dia 9 de maio no Hospital São Carlos. Edy era dependente da ajuda de terceiros porque sofrera um AVC em 2010. Por esse motivo, a saída foi mantê- la sob cuidados profissionais. Ela vivia em uma casa de repouso da cidade, que registrou um surto de coronavírus – outro morador da casa também morreu devido ao contágio. Para a família, a saúde da matriarca só se agravou por causa da covid- 19.
Edy era filha de Ernesto Antonio Edmundo Fetter e de Rosabela Weissheimer Fetter. Em 1955, casou- se com Egon Georg, com quem viveu por 45 anos, até ficar viúva. O casal teve quatro filhos: Carlos Roberto, Jorge Luís, Álvaro Ernani e Isabel Cristina. Ao lado do marido, em 1970, fundou a Combustíveis Egon Georg, revendedora da marca Shell. A empesa foi comandada pela família por mais de quatro décadas. O negócio foi vendido há seis anos. O passado solidário da família era um dos orgulhos de Edy.
Natural de São Sebastião do Caí, o avô Carlos Fetter veio morar na região para assumir as terras que havia herdado do sogro. Doou tijolos para a construção da igreja da localidade de Nova Vicenza. A área onde captavam o barro para a confecção de tijolos abriga hoje o Parque dos Pinheiros. Ao longo do tempo, Carlos e o filho Ernesto doaram diversos terrenos ao município, que abrigam pontos importantes para a comunidade como a Estação Ferroviária e o Colégio Estadual Farroupilha. Edy teve participação importante no repasse de terras para o desenvolvimento da cidade.
O eletricista Egon Luiz Georg, neto de Edy, conta que a avó não estudou além do ensino básico, mas era uma pessoa muito culta devido ao hábito da leitura.
Lembra de um dos maiores prazeres da avó, que era ler jornal e resolver as tradicionais cruzadas. Numa rede social, Egon desabafou: “ É triste perceber que as pessoas que amamos não duram para sempre. Mas por mais que saibamos que você partiu da nossas vida, as lindas memórias que ainda temos sempre contarão a história de tudo”.
Para os quatro filhos, sete netos e quatro bisnetos, Edy foi exemplo de generosidade, humildade e fraternidade.
CECÍLIO e a força da terra
Uma das maiores dúvidas dos Batisti é a origem da contaminação que matou o patriarca Cecilio, 85 anos, no dia de 5 maio. A resposta nunca será conhecida. A saúde do agricultor já era frágil, mas declinou rapidamente com a covid- 19. Transcorreram apenas cinco dias entre a coleta, a confirmação do resultado e a morte, tempo insuficiente para que ele tivesse contraído o vírus no hospital onde estava internado. Nenhum parente que mantinha contato direto com ele foi diagnosticado com a doença.
Natural de Estrela ( RS), Cecilio mudou- se para a histórica Santa Tereza quando tinha cerca de 20 anos. O trabalho braçal na agricultura lhe permitiu construir uma vida tranquila para ele, a esposa e quatro filhos. Sempre gostou de plantar frutas e hortaliças para consumo da família e também para vender. Já teve terras na cidade e, nos últimos anos, morava num sítio nos arredores de Santa Tereza.
Mesmo octagenário, Cecilio era uma pessoa ativa, não tinha o costume de consumir bebidas alcoólicas e não fumava. Também gostava de frequentar bailes da terceira idade. O idoso, porém, apresentava problemas cardíacos há mais de quatro anos. Sofreu dois enfartes entre dezembro passado e janeiro último. Dois meses antes da covid- 19, ele passou a tratar uma pneumonia que, apesar de avançada, não resultou em hospitalização imediata, condição que deixava familiares aflitos entre ida e vindas de atendimentos médicos.
O servidor público Leonir Batisti, 43, filho do agricultor, somente conseguiu a internação no dia 1 º de maio no Tacchini, em Bento Gonçalves. O pai de Leonir permaneceu em isolamento até o dia seguinte, quando houve a coleta e o encaminhamento para um quarto.
– Pelo laudo, vimos a data do exame e o resultado que saiu no domingo. Nesses dias foi solicitado a presença de acompanhantes da família no quarto no sábado, no domingo e na segunda- feira. Achamos meio estranho, pois só avisaram na segunda- feira que ele tinha covid – conta Leonir.
Na terça- feira, dia 5, já na UTI e entubado, Cecilio morreu.
– A gente vinha se cuidando porque o problema tem, estamos cientes. Não esperávamos que fosse acontecer na família. Não sabemos onde meu pai pegou, mas no hospital não teria sido. Fizemos exames entre nós e tudo deu negativo – diz o filho.
Além de Leonir, Cecilio deixou a esposa Ires Batisti e os filhos Ademir, Neusa e Ivani.
A inesquecível receita de IOLANDA
Um diagnóstico e um tratamento marcados por percalços. É assim que a família de Iolanda Moreira de Sá, 75 anos, define o drama vivido nas últimas duas semanas de vida dela em Vacaria. Foi uma mudança repentina.
Um dos prazeres de Iolanda era preparar cuscuz de milho para o café da manhã dos filhos Paulo Roberto Moreira de Sá e Jorge Luís Moreira de Sá, tarefa pela qual fazia questão de levantar cedo na simples casa no bairro São João.
– Fazia para a gente com aquela calminha dela de sempre, porque sabia que gostávamos – relembra Jorge, que trabalha como carpinteiro.
Dias após a matriarca ter recebido uma vacina contra a gripe, os filhos notaram que a disposição dela não era a mesma. Iolanda já não tinha força para cozinhar a iguaria e a saída foi levá- la para uma consulta na UPA. Apesar da queixa de dor de cabeça, falta de ar e febre, o diagnóstico inicial foi de sinusite, segundo Jorge. Como não houve melhora, Iolanda foi submetida a um novo atendimento em um postinho. O médico ficou desconfiado dos sintomas e recomendou uma avaliação no Hospital Nossa Senhora da Oliveira ( HNSO). Era dia 27 de abril.
– Minha mãe tinha diabetes, viram a glicose dela e receitaram xarope e paracetamol. Não examinaram o pulmão – conta o carpinteiro.
Na madrugada de 29 de abril, em casa, Iolanda acordou com uma tosse forte e “ espichada”, segundo descrição do filho. A mãe pediu remédio, um copo de água e reclamou da dificuldade para respirar.
– Levamos de novo no hospital. Passou mais de 40 minutos para a gente ser atendido. Minha mãe ganhou uma máscara e tirou porque não conseguia respirar – descreve o filho.
Já era manhã quando o médico plantonista do hospital teria anunciado a intenção de entubar Iolanda. Jorge então soube que a mãe estava com pneumonia dupla e água nos pulmões. Mais tarde, ele teria recebido a informação de que não seria mais necessário o procedimento e a matriarca foi internada num quarto com outros pacientes. Foi um período difícil, com Iolanda queixando- se de febre e falta de ar.
Um médico, segundo Jorge, acreditava que seria um tratamento de 10 dias.
– Minha mãe não aguentava de tanto calor por causa da febre, tirava as cobertas. Num domingo, piorou e foi para a emergência. Melhorou e voltou para o quarto. No dia 5 ( de maio), piorou novamente e baixou na UTI – detalha o filho.
Em 7 de maio, os filhos souberam que a mãe era portadora da covid- 19. Iolanda morreu por volta das 23h30min do mesmo dia.
– A parte mais triste é que pegaram ela, embalaram num saco plástico, colocaram num caixão e levaram embora. Fomos do hospital para o cemitério e nunca mais vi minha mãe – desabafa o carpinteiro.
Jorge questiona a demora para a realização de um teste e considera que o tratamento não foi adequado. Segundo o filho, o exame na mãe foi coletado no dia 6 de maio, ou 10 dias depois dos primeiros sintomas. Familiares de convívio próximo de Iolanda fizeram testes, que deram negativo.
O caso gerou questionamentos e a equipe da Vigilância Sanitária vistoriou as instalações do hospital, a pedido do Ministério Público ( MP), e fez apontamentos. A instituição teria feito ajustes após a inspeção.
Procurada pela reportagem, a direção do HNSO ressalta que a instituição e os profissionais de saúde estão comprometidos com o combate à covid- 19 e vêm trabalhando duro em prol da saúde da população de Vacaria e região.
O HNSO reforça que“ tem total interesse na preservação da saúde de todas as pessoas que atende, dos pacientes, colaboradores, visitantes, prestadores de serviços, etc., e segue as normas legais vigentes em nosso país, as normas técnicas do Ministério da Saúde/ Anvisa e demais órgãos oficiais, buscando sempre o aprimoramento em protocolos e tratamentos na área da saúde das pessoas, esclarecendo que as ações e medidas de prevenção, controle e mitigação das infecções causadas por esse vírus novo, são tomadas com base no que se sabe até o momento, podendo e devendo ser adotadas outras ações com o surgimento de novas evidências científicas.”
O MP continua acompanhado o caso. A advogada Josiana Padilha, representante da família, ingressou com um processo na Justiça.
VALTUIR, o grande torcedor
Valtuir Lovatto, 74 anos, era daqueles torcedores que abria um largo sorriso a cada vitória do time do coração. Colorado convicto, tinha no futebol uma distração na luta diária que travava contra o Mal de Parkinson, doença que lhe acompanhava havia seis anos. A enfermidade minou sua saúde ao longo do tempo. Bastante debilitado, Lovatto precisou ser internado no Hospital Pompeia no dia 17 de abril.
Uma semana depois, a equipe médica constatou que ele havia contraído o coronavírus. A batalha de Lovatto terminou no dia 19 de maio. A morte foi mais um baque na família. Três meses antes, a esposa de Lovatto, Maria Gilse de Castilhos Lovatto, 79, morrera de câncer. Lovatto viveu a infância na colônia ao lado dos pais.
Criado no Distrito de Vila Oliva, interior de Caxias do Sul, migrou para a zona urbana na juventude. Na cidade, profissionalizou- se no ramo de retífica de motores.
– Ele trabalhou bastante tempo naquelas empresas ali em Lourdes. Era um trabalho pesado – lembra a cunhada dele, Marilda de Castilhos.
A família via ele como um pai tranquilo e que evitava julgamentos desnecessários. Antes de ser afetado pelo Mal de Parkinson, era assíduo frequentador do salão do bairro, onde passava as horas de folga com os amigos. Aposentado, viveu os últimos anos no loteamento Jardim Itália, região do Santa Lúcia Cohab. Residia no mesmo terreno que os filhos e recebia atenção constante.
Marilda não esquece do difícil tratamento hospitalar. Com problemas renais, Lovatto precisava de hemodiálise. O cuidado exigiu transfusões de sangue. A comunidade do Jardim Itália conseguiu mobilizar 10 policiais militares para uma doação de sangue, gesto que a família não esquece.
– Para a família, ele foi tudo de bom. Era na dele, nunca ouvimos ele falar mal de alguém – relembra a cunhada.
Lovatto foi sepultado no Cemitério Parque, onde também descansa Maria Gilse.
FIRMINO, o mestre da gaita
Bastava ouvir um toque de gaita que Firmino Carniel, 81 anos, se entusiasmava. Pudera, como gaiteiro animou muito baile na colônia durante a juventude. Nascido em Garibaldi, ele continuou morando a vida toda na região em que se criou, Boa Vista do Sul, antigo distrito garibaldino transformado em município. E foi em Garibaldi que Carniel buscou auxílio contra o coronavírus, que acabou acarretando sua morte, em 5 de maio.
Carniel e toda a família vivem do setor primário. Possuem uma granja em que produzem leite e queijo, produtos tradicionais na região de Garibaldi, além de plantar uva. Ele morava com a mulher, Carmelina, a filha, Oneides, e um genro.
– Era um nono ( vovô) bem animado, passou a vida animando festas comunitárias com sua gaita, dançando. Todo domingo tinha churrascada na granja, ainda agora. Ele gostava de jogar carta e também de bocha com os amigos – descreve outro dos genros, Aécio Toretti.
Nos últimos tempos a vitalidade foi substituída pela preocupação constante com os problemas de saúde, diz Aécio. Carniel era hipertenso, diabético e tinha problemas respiratórios.
– Ele tomava uns 20 comprimidos por dia e internava umas duas vezes por ano em hospital. A gente estava preocupado – resume Aécio.
Carniel foi internado pela última vez no final de abril, no hospital São Pedro, em Garibaldi. Estava com uma tosse contínua e febre. Os familiares desconfiaram de coronavírus, o que acabou se comprovando em exames. O produtor de leite ficou num quarto comum. Permaneceu conversando, lúcido, relata Aécio.
Até que um dia a falta de ar pegou forte e ele não resistiu. Morreu no dia 5. Ele foi sepultado no cemitério de Linha Silveira Martins. Carniel deixou a viúva, Carmelina, os filhos Gilmar, Oneides, Ivonete e Marizete, nove netos e três bisnetos.