Aos 28 anos, Josué (nome fictício) empunha a Bíblia no lugar de uma pistola ou revólver. Foram anos na perdição, sendo quatro ou cinco entre idas e vindas pelos presídios de Caxias do Sul. Ele é um arrependido do crime, que buscou na fé a superação do passado. A diferença é que ele é de uma geração diferente daquela que se convertia à religião a 10, 15 anos atrás nas casas prisionais. Com o fortalecimento dos grupos criminosos dentro e fora dos presídios, manter-se fiel a Deus tem sido mais do que uma questão de espiritualidade, é caso de sobrevivência entre apenados que buscam a redenção.
Para ter o bando sob controle, as facções só toleram liberar seus membros desde que eles permaneçam firmes em suas religiões e abandonem a vida de crimes. Os próprios apenados dizem que as lideranças não querem ver ex-soldados trabalhando para a concorrência, mas aprovam quem decide se manter afastado das drogas, das armas e dos roubos para recomeçar na religião.
No sistema prisional caxiense, há diversas igrejas e grupos de apoio que promovem visitas e cultos nas galerias como forma de ressocialização. O fator complicado é o batismo no mundo do crime, versão brasileira das tradições mafiosas em que o bandido jura lealdade e aceita obedecer estatutos para empoderar a estrutura que rege o tráfico de drogas, os assassinatos por encomenda e os roubos.
Não havia essa regra no passado. Antes, cada um podia decidir o que fazer quando as portas da cadeia se abriam. Um criminoso saía do presídio e continuava no tráfico de drogas sem ser incomodado. Outros se regeneravam com ajuda de igrejas, alguns por conta própria. O avanço dos grupos organizados nas cadeias mudou tudo.
Como a ressocialização oferecida pelo Estado produz resultados rasos, os chefes das facções somente respeitam as fileiras das igrejas, principalmente o trabalho dos evangélicos, que têm tido sucesso em recuperar detentos e egressos.
Abandonar uma facção não é simples. Homens de laços estreitos com os grupos criminosos e que juraram obediência às regras da bandidagem sabem que pedir para sair é o mesmo que arrumar encrenca. Quem deixa a cadeia, abandona a facção, mas continua no "corre", gíria para delitos, a sentença pode ser a morte. Daí a necessária autorização das lideranças para que ex-comparsas trilhem o caminho da Bíblia sob a crença de que não haverá recaída e possibilidade de mais um criminoso competindo nas ruas.
Voluntários que atuam na ressocialização dentro dos presídios dizem que as regras mudaram nos últimos quatro ou cinco anos. Mesmo quem busca refúgio na religião, é obrigado quitar dívidas com os chefes.
- Muitos fingem que se convertem para sair da facção. Teve 12 casas queimadas no ano passado de pessoas que não acertaram as contas com a facção e, entre eles, havia os convertidos. Quem entra de coração, não retorna para o crime - revela um voluntário que pede o anonimato por razões óbvias.
Na nova versão das conversões nos presídios, as igrejas neopentecostais ganharam terreno. São apenados que cumprem penas separados dos demais e evitam drogas e tumultos.
- Tem casos de pessoas convertidas para a católica ou espírita, mas não eram muito respeitadas - complementa o voluntário.
Ex-integrante de bando relata a rotina do antes e do depois
Josué exemplo dos novos tempos. É um dos poucos que aceita falar sobre sua nova condição, mas de forma anônima em razão da segurança. Típico penitente do crime, está sob a bênção de Deus e o aval da facção. Sabe muito bem que se voltar às ruas e ficar à toa terá de acertar contas consigo mesmo e com outros. Hoje, prega em sua própria casa e está prestes a virar pastor. O passado dele é igual ao de tantos jovens. Josué diz que tem gente pior do que ele, mas admite ter cometido erros e está pagando por isso.
- Apanhei um monte no primeiro assalto que fiz. Fui preso e lá no presídio me disseram que roubar pedestre é coisa de "chinelo", me orientaram que não devia roubar de trabalhador - descreve o rapaz, ao lembrar do chamado para se unir a um grupo dentro da cadeia.
Na época, seu coração estava fechado para tudo. Virou soldado do crime. Da primeira vez na cadeia, ficou apenas alguns dias preso. Na segunda ocasião, o encarceramento durou meses. Na última entrada, permaneceu dois anos e meio fechado. Não queria mais aquela vida. Diz ter encontrado uma resposta nos cultos no presídio.
Josué manifestou seu desejo aos chefes e recebeu a autorização para desfazer os laços. O homem explica que as lideranças criminosas respeitam as decisões de apenados arrependidos porque a maioria já teve contato com a palavra de Deus ou aprendeu na convivência com os pais. Mas não é apenas questão de empatia, envolve negócios também.
- Se tu fizer pelo certo, vão te abençoar. Se sair da bênção dá problema, mas no seguinte sentido: se eu sair da vida que estou hoje, vou envergonhar as pessoas que apostaram em mim. Pra eles (facção), não: o inimigo é astuto, tu vai começar a ter rolo com mulher, as coisas vão acontecendo devagar, pego uma droguinha aqui, vendo um pouco mais caro, daí aparece coisa roubada, compro. Daqui a pouco faço brique com a concorrência, compra uma coisa que não era para comprar. Ou tu está com nós ou corre de nós, muda a condição, entende?
Hoje, o futuro pastor se vê na condição do homem de responsabilidade perante aos fieis e à família. Conseguiu um emprego e foi acolhido por pessoas que apostam no trabalho social e religioso como alternativa à rotina de crimes.
Em relação ao futuro, ele pretende apenas construir pontes para almas errantes. Garante estar em paz com a facção e encerrou atritos com desafetos:
- Não tenho mais nada, já conversei com o pessoal. Com quem eu tinha tumulto, a maioria já morreu porque esse é o caminho dessa vida: ou tu morre, ou tu tá preso, ou tu te converte. Tem gente que não gostava de mim, está me pedindo socorro.Tu vai ganhando confiança porque você não está brincando de ser crente. Faço grupo de apoio, não faço culto. Então, sento numa roda, tem aí 10, 15 minutos para falar o que o teu coração mandar.
Ele reconhece que a redenção não é fácil
- Manter tua família, sendo trabalhador, sabendo que tem um caminho mais fácil, é complicado. Esse é o detalhe da espiritualidade. Ela te ajuda se manter, te dá liberdade para deitar e dormir com a consciência leve. Mesmo com meu passado, cheguei sentei com esse rapaz, com um empresário, que abriu a porta e, graças a Deus, o meu trabalho está se somando com o dele. Ele é cristão e acreditou em mim - agradece Josué.
O apenado ainda cumpre pena no regime semiaberto após ser condenado por assaltos e outros delitos.
Obediência até o fim
Josué fala abertamente, mas outros ex-integrantes de facções preferem o silêncio:
- Eu não posso falar sobre a minha conversão ou sobre a decisão de aceitar Jesus Cristo na minha vida porque as facções têm regras. Não posso falar sobre porque decidi deixar de ser um soldado. Existe lei dentro das organizações e vou cumprir essa lei até o final da minha vida - contrapõe um ex-apenado.
Pelo menos três ex-integrantes de facções criminosas relataram praticamente a mesma coisa: ao deixar o tráfico de drogas e buscar a religião como um caminho para recomeçar, ainda seguem o estatuto das organizações, e mesmo com as identidades preservadas, não se manifestam sobre o assunto. Os três, dois homens e uma mulher, se converteram a igrejas evangélicas. Nos templos, sem se conhecer, e em períodos diferentes, ao longo dos últimos dois anos, de joelhos, e chorando, os três aceitaram Jesus Cristo como o único senhor e salvador de suas vidas.
Mesmo que não falem sobre o assunto fica evidente que as facções criminosas não deixam escolha aos integrantes: caso deixe a organização, a única maneira de seguir vivo é se arrepender de todos os pecados, aceitar Jesus e frequentar uma igreja evangélica. A conversão à Igreja Católica também é aceita, mas dentro e fora dos presídios as igrejas evangélicas parecem ser mais respeitadas. Ser membro de uma delas é o único caminho para deixar de ser um soldado.
A explicação para essa preferência pode ser a proximidade dos pastores e a frequência com que atuam dentro dos presídios ou até mesmo o número de igrejas pequenas espalhadas pela cidade para acolher quem se arrepende. Os pastores conquistam a confiança de presos e apostam num acolhimento maior e numa vigília mais rígida.
Desejo de pertencimento
Para o pastor da Igreja Batista da Comunhão, David Scherdien Santos, essa aceitação acontece porque, ao se converter, os ex-integrantes não representam ameaça às facções:
- Não conheço o funcionamento das organizações criminosas e nem sei como é internamente, mas acredito que quando os traficantes deixam as facções, os líderes desses grupos respeitam essa escolha porque essa pessoa saiu movida pela fé. O ex-integrante, que busca uma nova vida, se converte, ele não é uma ameaça. Acredito que seja isso, ele não é um concorrente, não entrou para um grupo rival e não representa um perigo ao grupo porque quando a pessoa segue o caminho da fé, ela se arrepende do mal que fez, e a facção aceita essa opção como o caminho escolhido.
Ele aponta que quando uma pessoa entra em uma facção, ela é movida por desejo de pertencimento:
- As pessoas buscam um espaço, um senso de relevância e dentro das facções elas têm essa falsa ilusão de que vão encontrar esse preenchimento para o vazio que em suas vidas. Eles têm essa necessidade de fazer parte de algo. A busca continua e eles percebem que esse caminho está em Jesus. Ele é a verdade e a vida e acolhe quem precisa.
"Mesmo quem não se aproxima de Deus, aceita a escolha"
Há 24 anos, Fernando Marca dedica-se à Pastoral Carcerária da Igreja Católica em Caxias do Sul. Ele e outros integrantes visitam o presídio duas vezes por semana, aos sábados e domingos, para levar conforto e uma palavra de fé aos detentos. Os agentes pastorais escutam os presos e contribuem para o processo de iniciação à vida cristã daqueles que buscam a religião para se fortalecer:
- Entramos na galeria e convidamos os presos que desejam ouvir e conversar sobre os ensinamentos cristãos. Conheci muitas histórias e percebo que quem quer mudar de vida se aproxima da fé. Noto que muitos presos ou ex-presidiários hoje têm uma nova vida, com empregos e longe do crime, no bom caminho, porque unem a fé e a família. Acredito ainda que os círculos da paz com rodas de conversa e resolução de conflitos e ensinamentos também envolve aqueles que ainda não querem se aproximar de Deus.
Sobre a conversão dos presos ser aceita pelas facções, Marca acredita que mesmo quem diz não acreditar em Deus, sabe que há algo maior e respeita o desejo de quem busca na fé e na oração um recomeço.
- Aqueles que tiveram a experiência de aceitar Deus sabem que ele é o Pai, que é compreensivo e ama seus filhos. Eles são tocados pela fé e buscam mudar de vida. Nós tentamos mostrar a eles que Deus pode ser o caminho, que ele é bom e justo. Acredito que mesmo quem não se aproxima de Deus, aceita a escolha de quem quer acreditar que aja salvação pelo mal que fez. Até quem não tem essa fé, quer esse conforto de saber que há uma chance de salvar sua alma. Talvez pensem em Deus apenas no fim da vida, mas o fim da vida pode ser hoje, e poder ter algo em que acreditar é necessário a todo o ser humano - teoriza Marca.