Lá na casa mais humilde do Beltrão de Queiróz, ou na cobertura dos Altos do Juvenil, o temor do coronavírus entrou como um punhal. Pais e mães, ao dar boa noite e abençoar os filhos, que descansam o sono dos justos, crentes ou não, clamam por proteção do Altíssimo. A diferença, é que sofre mais com esse clima de incerteza, quem já sobrevive isolado, quase invisível. Fica mais tenso ainda para quem mora na periferia de Caxias do Sul, do que para a maioria das famílias, que habita o centro da cidade.
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Aqui, ou na China, é periférico quem vive à margem, mesmo que dentro da cidade. Nessa reportagem, quatro mães revelam seus medos e anseios, suas preocupações e virtudes, com um olhar terno e generoso que brota nos cromossomos maternos. É a vida como ela é, por meio da observação do cotidiano de Isabel, do Euzébio Beltrão de Queiróz; Rosângela, do Victório Trez; Vera, do Parque Oásis; e Sílvia, do Charqueadas. Nem sempre as palavras acompanham o sentimento que elas guardam no peito, por vezes, a voz trêmula revela a emoção desse tempo em que está tudo tão à flor da pele.
As mães sabem o poder de um abraço, porque ele quebra as muralhas do coração, rompe barreiras e extermina paradigmas. Mas como fazer num tempo como esse, em que a Organização Mundial da Saúde sugere o isolamento?
- Eu acho que, nesse período, as pessoas estão se aproximando mais dos filhos sim, mas as pessoas estão ficando cada vez mais afastadas umas das outras. Todos têm de se ajudar, mesmo à distância. Mas eu sinto que as pessoas estão esquecendo um pouco do próximo e sendo mais egoístas - desabafa a cozinheira Isabel Cristina Borges, 47 anos.
"Aqui na comunidade tem muitos que não têm renda"
Isabel dividia sua jornada em duas frentes, antes desse tempo de isolamento por conta da prevenção à covid-19. Metade do dia, em casa, como a mãe que também assumiu o papel de pai, porque é viúva há 10 anos. E no outro turno, Isabel cozinhava e servia quase 100 refeições por dia, na cozinha do Centro Comunitário do Beltrão de Queiróz. Mas o coronavírus virou de ponta-cabeça a sua rotina.
- Eu fiquei bem desesperada no início da quarentena… Para nós, aqui em casa, não falta nada, graças a Deus. Mas como eu trabalho dando comida, diariamente para 60 crianças, ao meio-dia, e mais 35 pessoas necessitadas, à tardinha, fiquei bem preocupada, porque eu não sabia como eles iriam se virar sem essas refeições que servíamos antes da quarentena - revela Isabel, que deu de comer aos que têm fome, pela última vez, no dia 17 de março.
Seu coração de mãe, que abarca mais do que os sete filhos, destes, cinco moram com ela, além de outros três netos, sempre acaba estendendo a outros o seu amor. Antes da prefeitura de Caxias organizar um mutirão para acolher os moradores de rua, ela chorou, implorou por ajuda para que eles pudessem ter suas refeições garantidas. Com esse projeto da prefeitura, além de comida, eles têm cama, um teto, mesmo que temporário, podem manter em dia sua higiene, e usar roupas limpas. Então, Isabel suspirou.
Na sua rua, Isabel diz que os vizinhos estão mais em casa, estão respeitando as medidas de prevenção, mesmo que alguns sequer tenham água em casa.
- Aqui na comunidade tem muitos que não têm renda, porque são trabalhadores autônomos, e outros, não têm nem água em casa. Está difícil conseguirmos doações, porque as pessoas têm medo de vir aqui, pelo fato de morarmos na periferia, por acharem que estamos contaminados. Por isso, estamos nos organizando e indo nós mesmos buscar as doações, pelo menos uma vez por semana.
Para além disso tudo, Isabel tem a rotina cheia, com tantas crianças em casa. Entre filhos, netos e filhos da vizinha, são seis, dos 3 aos 14 anos. Ah, e tem ainda outros quatro filhos, entre 16 a 30 anos. Em tempos de escolas e projetos sociais fechados, Isabel tem acumulado as funções de mãe e professora.
- Montei um grupo, no WhatsApp, das famílias que conheço, para tentar ajudar as mães a interagir com a galerinha. Compartilhamos umas com as outras as dicas do que fazer com as crianças. Até jogos educativos consegui para doar, porque não dá pra ficarem em casa sem fazer nada, né - diz, com sorriso de quem fica em paz quando vê o próximo feliz.
"Somos todos iguais no mundo"
O coronavírus expõe com mais frieza as mazelas e ressalta as diferenças entre as classes sociais. Há em Caxias, quem esteja com tanto estoque de comida que não tenha mais prateleiras para empilhar mantimento. No entanto, na outra ponta da gangorra tem gente que sequer se alimenta direito, e para quem o álcool gel é item de luxo. Aliás, o Procon acha justo R$ 12, para um pote de 500g, mas tem lugar que vende a mais de R$ 40.
- Eu sou bem sincera, tenho medo do que está por vir, mas eu acredito que Deus vai colocar um ponto final nisso, e tenho fé de que tudo vai passar. Deus tenha misericórdia de nós, e dos mais simples, que não têm condições de manter um alimento, imagina comprar um kit de higiene - resigna-se a esteticista autônoma Rosângela Aparecida Oliveira, 42, casada com Adoir da Silva Santos, 46.
Rosângela decidiu fechar o salão quando soube dos primeiros casos da covid-19 em Caxias. Logo depois, veio o primeiro decreto municipal, que estabeleceu regras para o funcionamento de empresas, do comércio e serviços na cidade. E desde então, ela, o marido e o filho mais velho, deixaram de trabalhar, e permanecem em casa, ao lado dos outros três filhos.
- Precisou ter uma epidemia tão grave como essa pra gente parar um pouco. Vivemos correndo o dia todo e deixamos de fazer coisas essenciais, como fazer mais parte da vida dos nossos filhos. E, nesse momento, mais juntos em casa, estamos resgatando o final de semana em família, entendendo que o mundo é mais do que trabalho e tecnologia - defende.
Rosângela entende que o pior ainda está por vir, mas tem fé e sugere às pessoas que estejam preparadas psicologicamente e espiritualmente. Em tom de desabafo, ela entende que o coronavírus, que já infectou mais de 500 mil pessoas no mundo todo, coloca ricos ou pobres em pé de igualdade.
- Sou cidadã brasileira, sou igual a todas as pessoas. Não existe classe social, não existe língua diferente, nesse momento somos todos iguais no mundo. Cada um tem de fazer a sua parte, cabeça fria e muita fé - ensina Rosângela.
"É triste, mas eu procuro manter a calma"
Como dizer para uma mãe que ela não pode andar ansiosa, se a incerteza é a sombra que persegue os seus dias? Antes da covid-19, a vida da manicura Vera Lucia Ferreira Da Silva, 38, já era muito difícil. Mãe (e pai) de três filhos (dois meninos com 20 e 14, e uma menina com 12), esse tempo de trouxe a ela uma nova listas de preocupações. A primeira, é a questão financeira. Vera é manicure que atende a domicílio e nem que insistisse com as clientes, seria recebida, porque é tempo de isolamento e prevenção da propagação do coronavírus.
- Meus filhos me questionam, fazem mil perguntas pra mim… - desabafa.
- O que eles te perguntam? - insisto.
- Me bate um desespero, mas tento me manter calma. Eles querem saber quando vai ter aula novamente, como vou fazer para pôr comida na mesa, e pagar água, luz sem trabalhar. São perguntas assim… E também me perguntam se eu estou bem… É triste, mas eu procuro manter a calma - revela, em longas pausas.
Vera reconhece que não tem sido fácil manter as crianças em casa, e tranquilas.
- Está sendo difícil manter as crianças aqui dentro, trancadas em casa, elas ficam entediadas, mas eu explico que a mãe quer proteger eles. Meu filho (14 anos), tem diagnóstico de hiperativo e, às vezes, fica bem agitado. Mas a menina é mais tranquila, brinca de boneca e faz tricô - conta.
Da janela de casa, Vera diz que não tem visto movimento nas ruas, seus vizinhos parecem estar mais em casa, também preocupados com o possível contágio.
"Isso tudo vai passar"
Há menos de um mês, por pouco um incêndio não consome a casa da família da artesã Sílvia dos Santos da Silva, 58. Ela, com enfisema pulmonar, hipertensa e cardíaca, é casada com Hermes, 72, ambos no grupo de risco da covid-19. Mãe de dois adultos, de 22 e 20 anos, e de uma menina de 14, ela não tem saído de casa, nem para ir ao mercado.
- Medo a gente tem, mas eu creio em Deus. Isso tudo vai passar, em nome de Jesus. Eu sou artesã, sabe, então, procuro ocupar a minha mente. Quando termino meus afazeres de casa, faço meus artesanatos - conta.
Sílvia diz que no Charqueadas, ela tem água encanada, mas se pudesse fazer um pedido imediato à prefeitura, em tempos de medo do contágio por coronavírus, seria a distribuição de álcool gel.
- Nem todos conseguem comprar, então acho importante a prefeitura doar - defende.
- E a senhora tem álcool gel em casa? - pergunto.
- Não.
Sílvia diz que anda realmente preocupada com esse momento. O marido é aposentado e não recebe o suficiente para manter a família, ela, não tem vendido nenhuma peça de artesanato, porque diz que as pessoas preferem guardar o dinheiro para comprar comida. Felizmente, o filho mais velho tem ajudado em casa. Mas é tudo incerto, não saber por quanto tempo essa situação vai continuar dá um nó no estômago, a ponto dela sequer conseguir dar nome ao sentimento que finge esconder.
- Não sei te dizer…
Depois de uma pausa, ela tenta discernir:
- Eu fico muito preocupada, tenho medo por meus filhos, por isso, procuro manter eles em casa. Eles só saem pra ir ao mercado já que eu e meu marido não podemos ir.
- Depois que tudo passar, qual futuro a senhora quer para os seus filhos? _ pergunto.
_ Gostaria que eles continuassem assim, queridos e humildes _ diz, com o coração que transborda em amor materno.
Suporte da FAS
A Fundação de Assistência Social (FAS) é a responsável pela gestão de todo o assistencialismo em Caxias do Sul. Na cidade, há 62.445 pessoas no Cadastro Único. Esse cadastro é nacional e identifica famílias em vulnerabilidade social, e é através dele que as famílias podem ter acesso a programas do governo federal como o Bolsa Família, tarifas sociais de água e luz, entre outros benefícios.
Além disso, salienta Ana Luiza De Bona Castelan Esquiam Viganó, diretora de Proteção Social Básica, da FAS, são atendidas 10 mil família, em média, por mês, em Caxias. Esse é atendimento, explica, é sistemático. Diferentemente do acolhimento de 150 moradores de rua, que está ocorrendo em uma ação pontual, que concede abrigo a eles, nos Pavilhões da Festa da Uva, por conta da prevenção ao coronavírus.
Entre as ações planejadas pelo poder público, ainda no contexto do coronavírus, Ana Luiza elenca duas estratégicas bem específicas.
Primeiro:
- Estamos fazendo um trabalho em parceria com a SMED (Secretaria Municipal da Educação) para atender as famílias, que vão receber auxilio alimentação, que foram avaliadas pela SMED, que estão no Cadastro Único.
E, segundo:
- Temos também os recicladores que vão receber auxilio alimentação, dos que estação vinculados ao CPR (Comitê da Cadeia Produtiva de Reciclagem).
Somente na semana passada, foram distribuídas 650 cestas básicas, concedidas para as famílias que têm sido acompanhadas pelos Centros de Referência de Assistência Social (CRAs). E, por dia, a FAS tem recebido em média 150 ligações por dia, sendo que 80% delas questionam a respeito do Corona Voucher. O projeto foi aprovado pela Câmara dos Deputados, na quinta-feira (26) e deve chegar ao Senado nesta semana, e prevê auxílio de R$ 600 para pessoas de baixa renda durante epidemia.
Suporte da UAB
O presidente da União das Associações de Bairros, de Caxias do Sul, revela, que de um modo geral, os moradores dos bairros mais afastados da cidade estão respeitando o decreto do prefeito. Ou seja, estão em suas casas.
- Nós temos orientado para as pessoas não irem ao parquinho para levar as crianças. A orientação é ficar em casa mesmo, sabemos que é um vírus perigoso, que se alguém pegar com imunidade baixa, não vai escapar - defende Valdir Walter, presidente da UAB.
Walter diz que tem mantido contato com o prefeito, avaliando semanalmente a situação de manter ou não todas as prerrogativas do decreto. E se for, preciso, disse o presidente da UAB, as instalações dos centros comunitários dos bairros podem ser usados para atendimentos da área saúde.