A necessidade de manter viva a memória de Naiara Soares Gomes, assassinada em março do ano passado, guiou os traços de spray sobre a parede da residência do comerciante Laerte da Silva, no bairro Belo Horizonte, zona norte da cidade.
Em quatro horas de trabalho na tarde de sexta-feira (11), o educador social e grafiteiro Andrigo Fernando Martins Barbosa concebeu uma representação da criança na esquina da Avenida dos Metalúrgicos com a Rua dos Cesteiros.
O azul discreto da construção ganhou o rosto de Naiara, asas de anjo, sóis, corações e muitos likes que servem como um recado à população: “Seus likes foram grandes, mas eu ficar no esquecimento por vocês foi bem maior”.
Invisível durante a curta vida de sete anos e visível apenas nos dias do desaparecimento e confirmação de morte, Naiara merecia uma justa lembrança. Essa provocação motivou Andrigo a contrapor o lapso coletivo constatado na passagem de um ano da morte da menina, em março. Na ocasião, uma caminhada pelas ruas centrais reuniu apenas nove pessoas.
A alienação não ficou apenas naquele momento. O próprio educador social já havia grafitado a mesma parede de Laerte com a imagem de Naiara dias depois do assassinato. Meses depois, o desenho desapareceu durante uma reforma. O comerciante, que só conheceu a criança por meio do noticiário, cedeu novamente a moradia e cumpriu uma promessa que havia feito na época.
Andrigo quer instigar a reflexão. Os likes na parede remetem à comoção por Naiara nas redes sociais. A menina desapareceu a caminho de escola, na manhã de 9 de março. No período, circularam notícias falsas, houve milhares de compartilhamentos com a foto da criança e muitas manifestações sobre a forma como Caxias do Sul trata suas crianças.
Quando o autor do crime foi preso e indicou a localização do corpo na represa do Faxinal, na tarde de 21 de março, teve até homenagem de apenados recolhidos num presídio da cidade. Na mesma época, o senador Paulo Paim (PT) propôs a criação de um prêmio que seria concedido às pessoas dedicadas ao combate à violência contra crianças e adolescentes.
O vereador André Rokoski (MDB) de Vacaria, cidade onde Naiara nasceu, sugeriu denominar uma escola infantil do bairro Vitória com o nome da criança. As emoções esfriaram e pouca coisa avançou. O projeto de Paim ainda está em análise no Senado, os vereadores de Vacaria rejeitaram a proposta de Rokoski e as discussões sobre os direitos de crianças e adolescentes tiveram poucas efeitos práticos.
— O esquecimento foi muito rápido, o que é uma pena _ constata o grafiteiro.
"Os jovens veem e reacende a memória"
Durante a grafitagem, diversas crianças pararam para observar Andrigo. Algumas teceram narrativas baseadas nos desenhos que reproduzem parte da cena do crime. A arte é inspirada numa charge feita pelo próprio educador.
— Conhecia ela, morreu num campinho aqui perto de casa — disse uma menina de 11 anos.
— Tenho uma colega chamada Naiara, por isso sei. Ela estava indo para a escola e o cara de um carro pegou ela. Foi para o céu — descreveu outra guria.
O estudante Alisson Torquato, 16, elogiou a atitude e relembrou do caso.
— Fiquei sabendo da morte na escola. Daí procurei na internet. Ele (Andrigo) está bem certo. Tinha as homenagens ali e tiraram.
As reações eram esperadas pelo educador.
— Veja que os jovens veem e reacende a memória. E sabe que só me toquei há pouco que estamos no final de semana do Dia das Crianças?
Ele estima que os desenhos devem durar pelo menos dois anos.
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Foto na biblioteca
O educador social não está sozinho na tarefa de rememorar Naiara. No início do mês, o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos Esperança, no loteamento Aeroporto, batizou uma sala com o nome de Naiara e colocou uma foto dela sobre a pequena biblioteca da entidade. O serviço é frequentado por crianças e adolescentes em vulnerabilidade que moram no mesmo território por onde a menina circulava.
A foto entregue pela família da criança tinha captado uma essência de Naiara: sorridente, com camiseta rosa, sua cor preferida, e cabelo enfeitado por uma tiara branca. Por enquanto, a homenagem é singela, mas a intenção é instalar uma placa na entrada da sala.
— Era um sonho enquanto integrantes do projeto. É um símbolo para que casos assim não aconteçam novamente. As crianças nos trazem muito forte essa preocupação, elas conheciam Naiara, sabem da história até pelo território em que estão. Então, se trabalha com elas a questão da segurança, dos cuidados — reflete a assistente social do Esperança, Fabiane Aparecida Grassi.
O grafiteiro Augusto Bazzo também se ofereceu para homenagear a menina por meio de um mural que une grafite e realismo. A arte ficaria na mesma sala do Esperança e a proposta está sendo analisada pela direção.
— A ideia é realmente mobilizar pelo fato de a criança ter morrido e por outras crianças estarem na mesma situação. É para abrir o diálogo, fixar uma homenagem — diz Bazzo.
O AUTOR DO CRIME
:: O julgamento de Juliano Vieira Pimentel de Souza, homem que admitiu à polícia ter estuprado e matado Naiara Soares Gomes, ainda não tem data marcada. É possível que isso ocorra em dezembro.
:: No final de setembro, os desembargadores da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça (TJ) do Estado negaram o pedido da Defensoria Pública, que representa o réu, para que o júri ocorresse fora de Caxias.
:: Souza segue preso em isolamento na Penitenciária de Canoas (Pecan) 2.