O olhar cansado, a dificuldade em caminhar, e a pele enrugada e com hematomas. Por dentro, um dos rins já foi retirado, em função de um tumor e, o outro, parou de funcionar. Para sobreviver, enquanto ainda espera por um transplante, é preciso enfrentar a filtragem do sangue através das máquinas de hemodiálise. Sem mais detalhes, esse diagnóstico seria suficiente para justificar uma vida apática, entregue a uma cama em um quarto fechado e escuro, para despedir-se dos dias que restam abraçada a uma sufocante depressão. Essa é a visão de quem espera pela morte, enquanto sobrevive.
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E como se chama quem encara a hemodiálise como condição para a vida enquanto o novo rim para transplante ainda não veio? O nome de gente assim é Maria. O nome bendito da mãe de Jesus é sinônimo de fé para Maria Belmair Vieira, uma das 600 pessoas inscritas na Associação dos Renais Crônicos de Caxias do Sul (RimViver), uma das 15 entidades participantes da Feijoada do Pulita, que ocorre no próximo sábado, dia 13, no Samuara Hotel, em Caxias.
— A gente tem de encarar a hemodiálise como um tratamento para viver e não para morrer — ensina Maria Belmair Vieira, 65 anos.
Maria foi acolhida pela Rim Viver há 25 anos. Encontrou na entidade mais do que orientação e apoio financeiro, mas um lugar para acalmar a mente e o espírito e, principalmente, para doar-se. A rotina da Maria, à exceção das sessões de hemodiálise e das consultas médicas, nem de longe é de uma doente renal crônica.
— Eu vou para a hemodiálise segunda, quarta e sexta. Aí, depois eu venho para a sede da Rim Viver e faço as atividades do dia. Nas terças e quintas, eu abro o brechó. Eu ainda tenho dois netos, que são gêmeos, e uma neta, que eu crio. Tenho uma vida bem agitada, sabe. Eu não paro para pensar que eu sou uma doente renal crônica. Eu sou normal, igual a você — argumenta Maria, que tem 12 netos.
Maria resolveu retribuir a acolhida na Rim Viver doando esperança por uma vida melhor a quem procura entidade. Da ajuda na lida da cozinha, virou presidente (por um período de seis meses em 2014) e atualmente é a responsável pelo Brechó Rim Viver.
— Eu não sou uma pessoa doente. Não tenho problemas de coração, não tenho colesterol, não tenho outras doenças. Eu só perdi um órgão. Eu me sinto útil, porque além de ser ajudada, ainda posso ajudar alguém.
Um tumor no meio do caminho
Maria buscou ajuda da Rim Viver porque realmente precisava. Não tinha condições para criar os quatro filhos, na época pequenos. Aos 40 anos, foi afastada por laudo médico do trabalho na Robertshaw por causa de um triste diagnóstico de tumor no rim. Guardou para si, sequer compartilhou com a família.
— O médico me disse assim: "Olha dona Maria, não tenho boa notícia pra te dar. Não tem mais como a senhora trabalhar, vou lhe dar os papéis para você se encostar (no INSS) — relata.
A reação, na época, ainda emociona ainda Maria.
— Quando recebi a notícia...bah!, para mim foi um choque. Sabe que na hora eu fiquei meio perdida — lembra Maria, desviando o olhar e apertando as mãos, sobre a mesa.
A notícia do tumor determinou a vida de Maria dali em diante. Mas ela achou que daria conta sozinha e que essa estranha nuvem ia dissipar.
À espera da segunda oportunidade
Segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, existem 22.616 pessoas na lista de espera por um rim no Brasil, destes, 998 só no Rio Grande do Sul. Maria já recebeu uma vez essa oportunidade.
— Há quatro anos, eu cheguei a receber um rim, mas não deu certo o transplante, então não gosto de entrar em detalhes — desvia do assunto, Maria.
Desde então, Maria tem renovado sua esperança para que o telefone toque mais uma vez com a notícia que pode mudar o rumo da sua história.
— A pessoa, para ser meu doador, tem de ter um "painel alto". Tudo tem de ser compatível — revela.
Esse "painel alto" a que se refere Maria tem a ver com a reatividade de anticorpos, e indica o grau de sensibilização do receptor em relação a possíveis doadores. Uma pessoa pode desenvolver estes anticorpos após ter recebido previamente transplantes, transfusões ou gestações. Como é o caso da Maria.
Cumprir o propósito de vida
— Isso aqui é a minha vida — diz, Maria, batendo com a palma da mão na Bíblia.
A fé, como ocorre em tantos casos como esse, é a coluna que tem sustentado Maria. Convertida à crença evangélica há 30 anos, diz congregar, atualmente, na igreja Caminho Pleno.
— Nossa fé não tem de estar no homem, mas em Deus — defende.
E ensina:
— A Bíblia nos diz que temos de buscar o conhecimento em Deus. É o Espírito Santo quem te ensina. Tu tem de ter uma crença para poder sobreviver. Quem será por ti se não for Deus. Graças a Deus estou aqui hoje. Todos os dias em digo "obrigada Senhor pela saúde dos meus filhos, dos meus amigos". Abençoo a todos que passam aqui pelo Bazar.
Maria agarra-se à esperança porque entende que vive-se para cumprir um propósito.
— Deus tem uma grande obra para eu fazer por alguém nesta terra. Por isso, vamos lutar até quando Deus quiser.