Caxias do Sul é berço de lideranças inquietas e a primeira relação que se faz é com a política e o mundo dos negócios. Nomes como Abramo Eberle, Raul Randon, Paulo Bellini, Euclides Triches e outros são evocados frequentemente para afirmar a cidade como referência regional e nacional. Não está errado. Esquece- se, porém, do DNA feminino que fundamentou a identidade dos caxienses ao longo dos 129 anos de emancipação.
Anna Rech, Gigia Bandera, Clélia Spinato Manfro, Maria Turra e tantas outras tiveram grande influência a exemplo de grandes homens na projeção da cidade para o resto do país. No presente, ainda há desequilíbrio de lideranças quando se observa a superfície, mas como define a professora Nilda Stecanela, "as mulheres estão se autorizando mais" a desempenhar esse papel. É um indicativo de que as próximas gerações se identificarão muito mais com Anas, Marias e Luizas na construção da futura Caxias.
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No livro Nossas mulheres...que ajudaram a construir Caxias do Sul, que reforçou a liderança marcante das mulheres do passado, e tentou compensar o esquecimento, as professoras Maria Abel Machado ( já falecida) e Leonor Aguzzoli resgataram a trajetória de 280 líderes de Caxias. Há um detalhe em comum: a condução de pequenos grupos ou comunidades inteiras sob a gestão de mulheres se basearam em relações horizontais e inclusivas.
Está lá a passagem da mais conhecida delas, Gigia Bandera, a moldadora de lamparinas de metal da pequena funilaria que se tornaria a gigante Eberle. Leonor cita a bancária Gysmunda Pezzi Letti, primeira mulher a comandar trabalhadores sindicalizados na história do Rio Grande do Sul e possivelmente do país. Gysmunda, nos idos dos anos 1920, enfrentou a sociedade para ingressar no mercado de trabalho. Como líder, permaneceu alguns meses no comando do Sindicato dos Bancários. Nada disruptivo para os padrões de hoje, mas uma afronta aos costumes da época
Onipresentes
Raras mulheres estiveram no comando direto das grandes empresas e de governos, onde os homens se sobressaíram pelas circunstâncias de cada período. Mas incontáveis nonnas ajudaram a erguer igrejas e obras sociais estimulando pares a cortar e dobrar massa de agnoline noite adentro. Outras mulheres, equivocadamente denominadas como donas de casa, impediram que a criançada ficasse à própria sorte na periferia. É a liderança em universos não reconhecidos como sinônimo de sucesso, mas pilar onipresente da cidade.
– Quantos homens famosos e cadê as mulheres? A força de Caxias do Sul esteve sempre com elas. De um lado, criaram os homens que fizeram sucesso, mas ninguém lembra da mãe do Euclides Triches. Foi a mãe de Raul Randon que o fez estudar e trabalhar de graça numa mecânica como aprendizado e convenceu a família a voltar para Caxias porque via uma oportunidade melhor – ressalta Leonor ao lançar o olhar para a ponta mais tradicional do DNA feminino em Caxias.
Longe da criação dos filhos, as caxienses exerceram atividades de impacto em diversos setores. Suas histórias foram contadas ou omitidas sob o ponto de vista patriarcal. Quantos captaram os ensinamentos de Ana Maria Ratt de Queiroz, mais conhecida como Marianinha Queiroz, uma das professoras com mais tempo em sala de aula? Estivesse viva, a primeira parlamentar de Caxias, Ester Troian Benvenutti, certamente gostaria de ver que hoje a cidade tem a maior bancada feminina da história do Legislativo, mas se questionaria por que são apenas quatro vereadoras num universo de 23 vagas.
– As mulheres não tinham rosto, nem voz. Elas constituem, porém, o grande valor de Caxias do passado e continuarão sendo daqui por diante – resume Leonor.
Espelho
Na vida contemporânea, Cíntia Buzin, presidente do Conselho da Empresária da CIC Caxias, vê as empresas como nicho de formação das novas regentes.
– Acredito que a mulher na liderança está acontecendo de forma natural. É algo recente até porque as nossas mães viveram na cultura de criar os filhos em casa. Prefiro apostar na equiparidade em alguns anos e, no caso de mercado, a absorção será pela competência e não pela questão de gênero – pondera Cíntia, diretora de uma metalúrgica, território dominado por homens até bem pouco tempo.
Como educadora, Nilda Stecanela despontou com uma liderança entre estudantes e professores. Conquistou reconhecimento com prêmios inclusive fora do país e hoje divide a pesquisa e as aulas com a gestão da pró- reitoria acadêmica da Universidade de Caxias do Sul. Autora de diversas publicações, ela observa os processos identitários das mulheres há anos e atribui a visibilidade cada vez maior das líderes ao aspecto da escolarização.
– Há uma liderança que acompanha as mulheres, uma fortaleza, mas isso é uma conquista que está se constituindo. Está havendo um progresso com mais mulheres se autorizando e se legitimando para esse exercício. À medida que a mulher prolonga sua escolarização, ela também exerce sua construção identitária – teoriza Nilda.
Estela Ballardin da Silva é da nova geração de lideranças. Aos 19 anos, preside a União Caxiense dos Estudantes ( UCES). Por estar à frente de uma instituição que representa mais de 30 mil jovens, considera o momento como uma vitória pessoal e se dá conta de que é um espelho.
– Quando penso numa liderança caxiense, surge uma figura masculina. Por isso, quando uma mulher está à frente de algo, vem uma sensação de que está quebrando uma regra, paradigmas. De 25 grêmios estudantis ativos, cinco são presididos por mulheres. É algo considerável visto que não tinha esse número antes – constata Estela.
Comunidades
Sabe aquele pensamento de antigamente que mulher cuida da casa e dos filhos enquanto o homem trabalha? Pois isso favoreceu a formação de dezenas de líderes comunitárias em Caxias. Muitas obras atribuídas aos prefeitos da cidade só saíram com a insistência dos presidentes de bairros e boa parte deles eram mulheres que dedicavam as tais “ horas vagas” ao bem comum.
Expoente do movimento de bairro, Cleusa Moraes, 64, entregará o cargo de presidente da Amob Vila Gauchinha, Zona Sul, na próxima semana. Seguirá ligada à associação, mas prefere ceder espaço para as novas gerações.
– Contei 41 presidentes de Amob eleitas na última eleição. No total, são 141 presidentes. O movimento segue firme – orgulha- se Cleusa.
Natural de São Francisco de Paula e mãe de três filhos, Cleusa conquistou o apreço da vizinhança quando conduziu a abertura do primeiro clube de mães da região do Kayser e Esplanada, em 1969. Desde então, não parou mais. A região Sul de Caxias, aliás, foi a que elegeu as primeiras presidentes de Amobs no passado. O currículo de Cleusa inclui participação abrangente como a instituição do concurso Mais Bela Comunitária. Um dos feitos mais marcantes foi o fechamento de um valão na Vila Gauchinha. O esgoto a céu aberto era uma das precariedades da comunidade, com muito mosquito e alagamentos.
– Batalhamos com a prefeitura e ganhamos canos grandes. Conseguimos fechar com um mutirão de moradores. Descíamos os canos com cordas e apoio de eucaliptos – lembra Cleusa, que também mobilizou parceiros da Vila Gauchinha para retirar famílias de uma favela na comunidade e levá- las para habitações populares.
– Para nós, a Cleusa sempre foi nossa líder pelo trabalho e esforço – elogia Valda Ramos, 61.
Religião
Religião está no DNA de Caxias do Sul, mas é terreno conservador onde muito mais homens conduzem rebanhos. Evangélicos, assim como católicos, têm a tradição de determinar essa tarefa para o sexo masculino. Longe de ver uma questão de gênero, a microempresária e pastora Evanir Tedesco, 68 anos, vem abrindo espaço para as mulheres no púlpito da Igreja Batista Nacional, em São Pelegrino. De vida sofrida na juventude, boa parte provocada pela violência doméstica, Evanir e o marido, o pastor Valdomiro Tedesco, 65, se mudaram de Cachoeirinha para Caxias em 1993 como missionários. Desde então, Evanir é uma das principais líderes religiosas, segundo apontamento do Conselho de Igrejas Evangélicas de Caxias.
Uma das iniciativas dela é o projeto Mulheres de Atitude, que instiga as fiéis a enfrentar problemas familiares e pessoais. A visitação nos bairros e as reuniões são semanais. O engajamento de Evanir chama a atenção porque nem todas as denominações evangélicas têm mulheres pregando no púlpito, assim como a própria convenção da Igreja Batista não reconhece a mulher como pastora. Contra a maré, a Batista Nacional, em São Pelegrino, já tem quatro pastoras.
– Tem igreja que é mais machista, mas respeitamos – diz Evanir.
A pastora conquistou fiéis na base do exemplo. Em vez do confronto, tenta a conciliação. Participa da formação de líderes usando a palavra de Deus e ganhou o apelido de pastorinha devido à estatura de 1m53cm.
– Você pode ser uma líder pelo salário que paga, mas se você ganhar a mente do funcionário terá um aliado. É o que digo de liderança serva – complementa.
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