A crise econômica que assola todo país tem reflexos dramáticos na saúde pública de Bento Gonçalves. Em uma tentativa de enxugar gastos e manter o caixa em dia, a Secretaria Municipal de Saúde fez cortes no orçamento e reduziu serviços importantes. Unidades básicas de saúde (UBS) da zona rural têm atendimento instável e a fila para uma consulta com especialista ultrapassa um ano. A falta de credenciamento hospitalar para cirurgias de alta complexidade gera uma espera quase que insuportável para os pacientes. A prefeitura organizou as finanças da Secretaria da Saúde e não sustenta dívidas com fornecedores, além de manter o estoque de remédios em dia – em recente prestação de contas, apresentou superavit de 50,52% no orçamento da pasta. Mas as consequências destes cortes resultam numa rede de atenção básica frágil.
– Nós reorganizamos as prioridades e estamos com sobra de recursos. Não temos mais medo de greve por falta de pagamento, como já aconteceu, mas é necessária a reestruturação do sistema. Por isso, houve uma certa otimização dos serviços – explica o secretário de Saúde, Diogo Segabinazzi Siqueira.
Leia mais:
Idoso é baleado ao reagir a tentativa de roubo de carro em Caxias do Sul
Até mesmo a unidade móvel, que estacionava em bairros onde não há UBS, não circula mais pela cidade. A ideia, segundo o secretário, é que o serviço volte às ruas no próximo semestre. Mas não há previsão de normalizar as consultas no interior. A medida anunciada em abril de manter atendimento de um turno por semana na zona rural não se confirmou. Ontem, por exemplo, não havia atendimento médico no interior. Além da atenção básica estar prejudicada, a espera por consultas com especialistas também é expressiva. A maior dificuldade é com a oftalmologia. Estima-se que o número de consultas represadas seja superior a mil. A mão de obra na cidade é fornecida pela Fundação Araucária, instituição contratada pela prefeitura. O município optou por desligar profissionais ligados à entidade e vai contratá-los diretamente. Por isso, lançou um edital que prevê a contratação de 239 médicos em um período de até cinco anos. No entanto, não há previsão de chamar os profissionais.
– Isto abre a possibilidade de contratar especialistas e em todas as áreas que hoje não estão supridas – detalha o secretário.
Sem hospital de referência
Outro agravante complica a situação do SUS em Bento: a cidade está sem hospital de referência para cirurgias. Casos como do aposentado Moacyr Pessali, que precisa de uma cirurgia no quadril (leia mais abaixo) se arrastam há anos. O coordenador médico da secretaria, Marco Antônio Ebert, diz que o gargalo persiste há cinco anos, desde que o Hospital Pompéia, de Caxias, deixou de ser referência para 22 municípios da região Basalto e Vinhedos. A referência passou a ser o São Carlos, de Farroupilha, que também não absorveu a demanda e os casos voltaram para o Pompéia. A prefeitura de Caxias, ainda na gestão passada, já teria negado a continuidade do serviço, e somente casos de urgência são encaminhados ao Pompéia. Bento Gonçalves articula uma tentativa de pedir o credenciamento do Hospital Tacchini. Para isso, os municípios vizinhos seriam convidados a participar financeiramente, segundo Ebert. Até o fim de maio, a lista de espera para cirurgias de alta complexidade em Bento era de 545 pacientes.
Maior gargalo é na oftalmologia
Especialidade que concentra o maior gargalo em Bento Gonçalves, a espera por uma consulta oftalmológica parece não ter fim. Histórias de pacientes que aguardam há mais de ano por uma consulta já se tornaram banais. Das 26 idosas que frequentam a Ação Social São Roque, por exemplo, 12 aguardavam há pelo menos um ano e meio para ter acesso ao serviço. A cidade deixou de ser referência em oftalmologia em 2014, quando o serviço terceirizado foi transferido para Nova Prata. Por quase dois anos, os pacientes percorriam mais de 60 quilômetros para ter acesso aos atendimentos. Mas com a falta de um serviço de referência, há pacientes aguardando há quase três anos por um procedimento. Uma das moradoras que denunciou a situação em audiência na Câmara de Vereadores é a aposentada Ivone Boss Mendonça, 69 anos. A peregrinação da idosa começou em setembro de 2014, quando sentiu a sensação de que os olhos estavam sempre latejando. Em abril do ano seguinte, ela despertou com um dos olhos sangrando. Foi encaminhada ao Hospital de Pronto Socorro, em Porto Alegre. Ela recebeu o atendimento emergencial na Capital porque não havia especialista em Bento. No entanto, até hoje não teve continuidade no tratamento. Ela aguarda por uma consulta há quase dois anos.
– Agendaram consulta em Bento para alguns dias depois e desde então estou esperando ser chamada. Não tenho nem como comprar o colírio que a última médica me receitou porque é caro – lamenta.
Lucila Tesser Mayer, 70, aguarda retorno há dois anos para cirurgia da catarata. O diagnóstico inicial feito há cinco anos e os sintomas não sumiram com o tempo. Ao contrário, só se agravaram.
– Às vezes, fico com a visão preta. É difícil, mas a gente não tem como pagar particular. O jeito é esperar– desabafa.
A prefeitura reativou o serviço de oftalmologia no Consultório Central, mas não há estimativa de quantas pessoas serão atendidas. Para comparação, em Caxias do Sul o tempo médio de espera para a primeira consulta com oftalmologista é de 15 dias.
No interior, atendimento é instável
O agricultor Antônio Cassinelli, 54, mora em um dos roteiros mais charmosos e visitados de Bento Gonçalves. No entanto, ele batizou o Vale dos Vinhedos com outro nome: vale dos esquecidos. Ele garante que as consultas médicas têm sido cada vez mais esporádicas na unidade básica de saúde (UBS) 15 da Graciema. A comunidade também reclama da falta de internet no postinho, o que dificulta a atualização do laudo de cada paciente, conta Cassinelli.
– O médico queria ver um exame meu, só que não conseguiu ver o resultado porque precisava da internet. Ele acabou me consultando sem saber o resultado do exame – exemplifica o agricultor.
Segundo os moradores, apenas um médico prestou atendimento durante um turno ao longo de todo mês de maio no distrito e não houve mais fichas para consulta. Desde o início do ano, a UBSs da 15 da Graciema e também das localidades de São Pedro, São Valentin, Tuiuty e Faria Lemos só abrem uma vez por semana. A prefeitura divulgou, no fim do mês passado, que os distritos voltariam a ter atendimento um turno por semana. No entanto, o profissional destinado ao serviço apresentou atestado no início da contratação, e não deu continuidade aos atendimentos, segundo o secretário de Saúde, Diogo Segabinazzi Siqueira. Um novo profissional será contratado até o fim deste mês, garante o secretário.
– Apenas a UBS do Vale dos Vinhedos (15 da Graciema) está sem internet. Vamos colocar um modem lá, é mais prático. A internet é fundamental para o cadastramento e alimentação do sistema E-SUS – explica Diogo.
Cirurgia de urgência completará aniversário
A peregrinação do aposentado Moacyr Pessali, 58, se tornou pública há meses. A comunidade do bairro Ouro Verde acompanha os passos que ele faz, lentamente, em busca de uma cirurgia no quadril. Ele caiu no banheiro de casa após sofrer uma convulsão em julho de 2016. A avaliação inicial da equipe médica da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Bento não diagnosticou os dois ossos quebrados no quadril. Após conviver 40 dias com dor intensa – capaz de provocar alucinações e crises nervosas – ele consultou com um especialista que indicou a necessidade de uma cirurgia de urgência.
– Achavam que ele tinha depressão ou estava ficando louco. Mas eu sabia que ele chorava de dor, que não era mentira – reforça Luci, esposa de Pessali.
De julho do ano passado até agora, a família apelou para Defensoria Pública, políticos, prefeitura e Estado. Pagou exames particulares e buscou orçamentos com médicos e hospitais para apresentar à defensoria, que prometeu bloqueio de bens do Estado e município. Desde o acidente, Pessali, que era ativo na comunidade, pouco tem saído de casa. Até sessões de fisioterapia, fundamentais para que o quadro de saúde não regredisse, levaram quase 10 meses para sair do papel. Na última consulta, ouviu que os ossos já foram calcificados. O município responsabiliza o Estado pelos gastos da cirurgia. O Pioneiro contatou com a titular da 5ª Coordenadoria de Saúde, Solange Sonda, que diz que cirurgias de alta complexidade como estas podem ultrapassar cinco anos de espera. O órgão prometeu em 31 de maio estabelecer contato com a família e viabilizar a solução mais rápida. Segundo a família, ainda não há previsão para a cirurgia.
– Eu estou atrofiando cada dia mais. Já estou perdendo o movimento das mãos. Para alguém que conseguia fazer todas as tarefas, é difícil – define Pessali.