Quando moça, o desejo de dona Emília Possebon, 98 anos, era seguir a vida religiosa, assim como três de seus 10 irmãos, todos nascidos em Garibaldi a partir da união dos imigrantes italianos Gerônimo e Ângela.
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para os 100 anos do Hospital Pompéia
O desejo de ajudar ao próximo a fez trabalhar no hospital de Bento Gonçalves, onde fez "um pouco de tudo"- cuidava de doentes, aplicava injeções e limpava o chão. Em Porto Alegre, cuidou de crianças abandonadas na creche São Francisco por dois anos. Mas uma doença grave nos olhos obrigou Emília a procurar tratamento médico e a despedir-se do sonho de se tornar freira.
O destino, porém, encarregou-se de lhe presentear um outro sacerdócio: o trabalho no Hospital Nossa Senhora de Pompéia. Foi para lá, em 19 de julho de 1941, que Emília se mudou aos 25 anos, para tratar o problema no olho. Convencida pela irmã, Elvira (irmã Suzana Maria), que já era religiosa e trabalhava no hospital na época, acabou ficando e, de paciente, tornou-se funcionária (foto abaixo).
Na época, o hospital, que era administrado pela congregação das Irmãs de São José, só aceitava servidoras que morassem no trabalho. Assim, Emília passou a dividir o dormitório no sótão do prédio com outras tantas moças e, logo mais, amigas: Catarina, Lucia, Graciema, Maria. Hoje, Emília é a última moradora do Pompéia.
- Nós éramos muito unidas. O hospital era a casa da gente. Não é como hoje, cada um por si. Como não dava para deixar o hospital sem ninguém, a gente se revezava para visitar as nossas famílias na época das festas de final de ano. Íamos de caminhão para Sananduva, Veranópolis, Antônio Prado... Mas sempre ficava alguém para fazer companhia às outras - recorda Emília.
Feliz por estar tão perto das freiras, às quais admirava a dedicação no trato com os pacientes e a disciplina religiosa, Emília não viu os anos passarem. Começou costurando, arrumando os quartos, lavando e passando roupas. Logo, passou a ajudar os médicos, alcançando material durante as cirurgias. Depois, foi transferida para trabalhar no setor administrativo, onde permaneceu até se aposentar, em dezembro de 1970.
- Nunca tive preferência por nenhuma área. Quem tem vontade de trabalhar, faz de tudo, encontra prazer em qualquer função. Acho que a vida era melhor naquela época, o tempo seguia mais devagar. Hoje é tudo muito corrido, tem muita gente nova circulando pelos corredores. Nem conheço mais o hospital de tanto que cresceu - diz.
Acostumada à rotina de acordar às 5h30min e ir dormir apenas quando o serviço terminava, Emília não se resignou com a aposentadoria nem quis ficar olhando o mundo girar. Escolheu continuar no Pompéia oferecendo sua vitalidade de sexagenária, desta vez no almoxarifado, onde está até hoje.
- Não faz sentido para mim deixar o hospital. Meus pais já se foram há muito tempo e não quero ser estorvo para ninguém. Aqui eu me sinto bem, por que eu sairia? - analisa.
E é por se sentir tão parte do hospital que dona Emília é lembrada pelos outros funcionários como durona e exigente. Nada de desperdício, aconselhava a todos.
- Quando vinha aqui pedir uma caneta, ela exigia que desse a velha, sem tinta. Para pegar qualquer outro produto, ela exigia a "requisiçon"- brinca uma funcionária.
Em função da saúde frágil, Emília hoje só trabalha se estiver se sentindo bem e tem horários flexíveis. Mesmo assim, diariamente, faça chuva ou sol, em uma salinha no subsolo do hospital, a figura franzina, de cabelo grisalho e roupas franciscanas é vista ao pé de uma mesa etiquetando pequenos frascos de remédio.
Quando termina a jornada diária, Emília sobe para a sua "casa", um quarto na unidade 320, onde ficam internados os pacientes clínicos do Sistema Único de Saúde (SUS). Atrás da porta 311, uma cama, um armário e objetos muito simples, iguais aos que existem nos quartos dos pacientes, seus vizinhos. Tudo é organizadinho. À noite, ela reza o terço, assiste à missa na TV. Porém, nada de novelas.
- Não gosto. É só porcaria - reclama.
A inclinação para a vida religiosa também não despertou em dona Emília o desejo de casar ou ter a sua própria família.
- A senhora nunca quis casar, dona Emília? - pergunto.
- Nem pensar. Antes só do que mal acompanhada! - brinca.
Quando pode, ouve rádio e acompanha jogos de futebol, seu programa favorito, só para saber como estão o Grêmio e o Juventude, times do coração. E nada de ficar pensando na vida nem em tristeza, sentencia:
- A pessoa tem de pensar positivo. Ver as coisas boas da vida. Não vou dizer que não sinto falta da minha família. Sinto, sim. Mas a vida é assim mesmo. A pessoa tem de se conformar como dá. Eu não posso me queixar da vida que levo. Aqui sou útil e tenho mais liberdade. Sou feliz.
Foto: Studio Geremia, Acervo Centro de Memória Dr. José Brugger