— Todo mundo deveria ter a oportunidade de vivenciar aquilo que ama tão novo.
A frase é da atleta de vôlei Angélica Malinverno. Natural de Caxias do Sul, ela começou a praticar o esporte na Serra Gaúcha, ainda quando criança e viu sua carreira deslanchar na adolescência.
— Comecei jogando em Farroupilha, na escolinha do Departamento Municipal de Desportos (DMD). Eu tinha 10 anos e já era muito alta, media 1m70cm. Eu joguei durante um ano. E quando estava nas férias da escola, em fevereiro, um vizinho meu falou: "Angélica, vai ter um teste de vôlei na UCS, por que você não vai?". Eu não tinha noção nenhuma do que era um teste, do que era, realmente, estar numa equipe competitiva. E aí, fui fazer o teste. Quando cheguei, o professor Fernando (Lemos) ficou impressionado, porque eu falei: "ah, eu tenho 11 anos". Na época, eu não sabia fazer nada, não jogava nada. Eu brinco até hoje que mal sabia andar e mascar chiclete, e ele apostou em mim — relembra.
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Foi a partir deste momento que a guria do interior do Rio Grande do Sul começou a se destacar. Residente de Farroupilha, ela viajava todos os dias até Caxias do Sul, de ônibus. A rotina era dividida em estudar e treinar.
— Era muito cansativo. Eu chegava à noite, tinha tarefa do colégio para fazer, e passei por isso durante quatro anos. Eu não lembro direitinho o ano, mas tive a primeira convocação para a seleção gaúcha e aí a coisa começou a ficar um pouco mais real. Em 2004, tive a primeira convocação para a seleção brasileira de base, e quando cheguei em Saquarema, no Rio de Janeiro, tinha 50 meninas, de todos os lugares do Brasil, para fazer uma peneira. Eu fui aprovada e fiquei entre as 20. Foi um choque de realidade. Acho que foi a virada da minha vida para entender que queria ser jogadora de vôlei mesmo — conta.
Naquele mesmo ano, ela recebeu uma proposta para deixar o Sul e jogar em São Paulo. Os pais de Angélica, Ivanes e Volney, entenderam que ela ainda era muito nova para essa mudança radical. No entanto, no ano seguinte, as propostas começaram a se repetir. Mais uma convocação para a seleção brasileira, um título no Campeonato Sul-Americano. E, neste momento, Angélica foi brilhar no Sudeste do país.
— Com 15, 16 anos, eu fui morar em São Paulo sozinha. Eu, a cara e a coragem — relembra.
Na carreira, ela acumula diversas convocações, desde as categorias de base até o profissional, disputa do Grand Prix, dois títulos Sul-Americanos e uma medalha de prata nos Jogos Pan-Americanos de Toronto. Além de diversos títulos regionais. Entre os momentos mais importantes, a chamada para a seleção principal, na temporada 2012/2013:
— Foi uma temporada muito boa na equipe do Praia Clube. E uma surpresa, porque eu estava viajando com a minha irmã e recebi uma ligação do meu supervisor da época falando: "olha, saiu a convocação da seleção brasileira. Vão se apresentar daqui a 10 dias e você está nesta lista". Então, foi muito inesperado e especial.
No entanto, no meio da euforia e de um ótimo momento profissional, o maior temor dos atletas bateu à porta de Angélica. Enquanto treinava com a seleção, foi diagnosticada com uma lesão de ruptura do ligamento cruzado anterior do joelho.
— É uma lesão que debilita muito. A recuperação é muito demorada. Eu fiquei sete meses para poder voltar para a quadra. Tive que operar. Então, foi muito difícil, muito triste, porque era o meu melhor momento e infelizmente veio a lesão. Eu tinha mudado de equipe. Então, tudo estava acontecendo muito bem. Até que a lesão deu uma brecada nisso — conta.
Depois de recuperada, Angélica conseguiu voltar ao auge. Em uma nova convocação, a disputa dos Jogos Pan-Americanos, em 2015, com a prata conquistada, e uma homenagem na Câmara de Vereadores de Farroupilha pela conquista em Toronto, marcaram esse retorno.
— Perdemos a final para os EUA. E ali foi a realização total de um sonho profissional, porque você estar em um pódio, num campeonato que tem uma visibilidade muito grande na América, que estava passando na televisão aberta na época. E eu sabia que os meus pais estavam assistindo. Sabia que o meu pai estava vivendo aquele momento. Ele já estava passando por algumas dificuldades de saúde, e eles estavam me assistindo, me prestigiando. Farroupilha é uma cidade que não é tão grande. Então, as pessoas conheciam meu pai, conheciam a minha história. Então, paravam o meu pai e falavam: "ah, eu vi a Angélica na TV" — relembra.
Na carreira de sucesso, são vários os momentos de destaque. Recentemente, a gaúcha começou a integrar um programa do Exército, com cerca de 200 atletas, de diversas modalidades. Defendendo o Brasil, eles disputam várias competições. Entre elas, a terceira maior do mundo: os Jogos Mundiais Militares. No ano de 2019, ela teve a oportunidade de disputá-lo:
— É considerado o terceiro maior evento esportivo do mundo. Ele fica atrás das Olimpíadas e da Copa do Mundo. Então, é muito grande. Tinham mais de 7 mil atletas e foi realizado na China, coincidentemente, na cidade do coronavírus, que foi em Wuhan. E nós fomos campeões. Ganhamos da China num jogo com mais de 12 mil pessoas dentro do ginásio. Foi um momento inesquecível da minha vida, que eu vou carregar para sempre, porque foi muito difícil. A China, assim como o Brasil, tem no seu elenco atletas profissionais. E a China tinha quatro meninas que eram da Seleção principal. Então, é um time muito forte, que estava jogando dentro de casa. O vôlei era um dos principais esportes, era aquele esporte que todo mundo contava com a medalha, e foi incrível ganhar delas dentro da casa delas — expõe.
Para as meninas que almejam uma carreira de sucesso, sonham em brilhar com a camisa da seleção e sentir a emoção de medalhar em uma competição internacional, Angélica deixa um conselho:
— Nunca deixe ninguém dizer que vocês não são capazes. Nós, mulheres, somos capazes. Não tem nada que uma mulher não possa fazer tão bem, senão melhor do que um homem. E corram atrás. Nada é impossível para aqueles que tentam, para aqueles que lutam, e para aqueles que batalham.
INCENTIVO DA FAMÍLIA
A central do Praia Clube faz questão de enfatizar a importância da família para chegar ao topo. Mesmo que ninguém fosse esportista dentro da casa de Angélica, todos embarcaram e acreditaram no sonho dela:
— O meu avô, que já é falecido, era fanático pelo Grêmio, e eu cresci dentro da casa dele, torcendo. No ano em que eu comecei a jogar, ele faleceu. Então, foi meu grande incentivador de praticar um esporte. Meus pais, minha mãe mais, no início, me incentivaram. Meu pai tinha muito medo, tinha muito receio, porque tinham viagens. A gente fez uma viagem para a Argentina de ônibus. Meu pai achou um absurdo, porque eu ia ficar uma semana fora, ia perder a escola, mas com o passar dos anos, ele foi vendo que eu levava jeito e que era muito legal. E aí foi apoiando também, me incentivando. A decisão de me autorizar a morar em São Paulo foi muito difícil, mas os dois foram fundamentais, são todo o alicerce que eu sempre tive na minha carreira, na minha vida.
Além dos pais e do avô Edgar, a irmã Jéssica também é uma grande incentivadora da carreira de Angélica. Ainda na infância, elas se despediram e até hoje sentem falta do contato diário.
— Quando eu saí de casa, o que eu mais senti falta, o que era mais difícil para mim, era ter que ficar longe da minha família. Quando eu saí, minha irmã tinha oito anos, e nós sempre vivemos longe. A gente brinca que o que mais detestamos na vida são despedidas, porque a nossa foi uma constante despedida — conta a atleta, que também faz questão de enfatizar o apoio do esposo Luis Cláudio da Mota Correa:
— Acho que é muito importante esse apoio da família, sobre como a família pode ser uma incentivadora, pode fazer a criança ou o adolescente, crescerem e conseguirem atingir seus sonhos. Eu sempre falo que uma base familiar fez toda diferença na minha vida. E que se não fosse pelos meus pais, pela minha irmã e, hoje, pelo meu marido, tudo teria sido muito mais difícil.
A LIGAÇÃO COM O PRAIA CLUBE
Na carreira, Angélica iniciou atuando nas categorias de base do Osasco. Foi ali que surgiu seu primeiro convite para disputar a Superliga.
— O Praia Clube ia para sua primeira Superliga. Fiquei aqui por cinco temporadas. Quando eu saí, foi só porque eu tinha uma oportunidade profissional maior e era o momento que eu precisava viver aquilo na minha carreira — explica.
Angélica ainda passou por Campinas, Brasília, e no Sesi, de São Paulo. No ano passado, voltou ao Praia Clube:
— No passado, recebi o convite para retornar aqui para Uberlândia (MG). Foi um convite muito especial, porque eu vi o nascer dessa equipe e voltei no momento que a equipe já tinha subido totalmente de patamar, que tinha se tornado uma das mais tradicionais, mais vencedoras da Superliga. Então, foi muito especial poder retornar para um projeto que eu vi nascendo. E esse ano eu tive a oportunidade de renovar o contrato, permanecer aqui.
Além do clube, a atleta também tem um carinho muito especial com a cidade mineira, onde reside junto com marido.
— Mesmo quando eu estou jogando em outras equipes, a casa que eu volto é em Uberlândia. Eu sou casada, o meu marido é daqui também. Então, eu tenho um carinho muito grande não só pelo clube, como também pela cidade, que me acolheu.
DIFICULDADE DE SER ATLETA NO BRASIL
Algumas pessoas que acompanham o esporte na televisão, acreditam que não haja grandes dificuldades em exercer a função. No entanto, a visão utópica se difere da realidade.
— Tenho consciência de que eu jogo um esporte onde nós somos privilegiadas. Hoje o vôlei é o segundo esporte do país. Então, no profissional, no principal campeonato dentro do Brasil, eu sei que sou uma privilegiada. Mas eu também vejo o contexto esportivo nacional de uma outra forma. Eu acho que é uma vida completamente instável, porque a gente depende do ano que a gente atuou para ter um contrato para a temporada seguinte. Tem times que têm uma estrutura muito ruim, tem times que não pagam, que ficam devendo, mesmo grandes equipes. Acho que isso é uma baita dificuldade que os atletas, do modo geral, enfrentam — explica.
Além disso, Angélica também destaca a preocupação dos atletas com o pós-carreira, com a aposentadoria. Mesmo neste período, não há uma estabilidade garantida.
— Acho que essa parte de incentivo fiscal, de benefício para o atleta, ainda é muito falha. Não se tem nada muito firme para o pós-carreira do atleta. Eu brinco que quem faz esporte no Brasil é um guerreiro, porque em alguns momentos, principalmente nos esportes individuais, que dependem de patrocinadores mais específicos, tem momentos que é muito difícil. O país está vivendo uma crise, onde o investidor corta no esporte. O esporte dá disciplina para crianças, dá responsabilidade, mas é mais fácil cortar a verba do esporte. Nós somos muito carentes, apesar de ser um país com muito atleta bom. A região Sul fornece muitos atletas para o Brasil inteiro. Mas somos muito carentes nessa parte de infraestrutura.
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