Quando Antônio Rogério do Nascimento saiu de casa para pedalar, o Brasil ainda não era tetra, nem Ayrton Senna era tri. Era 9 de fevereiro de 1991. E ele ainda não voltou. Há 24 anos, o Neguinho do Asfalto, apelido que recebeu em alguma rodovia do Brasil, percorre estradas a bordo de uma bicicleta que, carregada, pesa bem mais do que os seus 53kg. E assim seguirá pelo menos até 2021, quando cumprir a promessa de pedalar por 30 anos em agradecimento a Deus pelo que considera ter sido um milagre, de sobreviver a uma infância cheia de dificuldades.
Na praça de Nova Milano, na última segunda-feira, Neguinho contou sua história digna de um Forrest Gump da vida real. Nasceu em Corumbá (MS), há 37 anos. Conta ter sido fruto do casamento de um casal de irmãos de sangue, cuja mãe morreu no parto. Com sérios problemas de saúde, visão comprometida e dificuldades motoras, passou a infância entre internações e filas de espera. Aos 11 anos, recebeu transplante de córneas, um marca-passo e teve implantada uma válvula no cérebro, que lhe permitiram enxergar e caminhar melhor. E, aos 15, iniciou a peregrinação que, segundo calcula, já beira os 300 mil quilômetros rodados pelo Brasil e quase toda a América Latina.
- É um milagre eu estar vivo, mas faz 24 anos que estou pedalando e meu único problema são os remédios controlados, mas para isso tenho papéis judiciais que garantem que eu os receba - explica.
Ao contrário do que a história possa sugerir, Neguinho não é uma pessoa triste. Pelo contrário, suas falas são espirituosas, ainda que curtas e ditas baixinho. Para dar ideia de quanto já rodou, comenta ter gasto mais de 100 pares de tênis e cerca de 200 pneus. Já teve sete bicicletas, sendo que algumas já substituídas ficaram expostas em postos de combustível, como souvenires para dizer "Neguinho passou por aqui".
Entre relatos desencontrados e outros que comprova folheando uma pasta com dezenas de reportagens sobre as andanças, Neguinho mostra por que virou uma lenda das estradas. Já foi atropelado por um motorista embriagado em Camaçari (BA), teve bicicleta roubada e a barriga esfaqueada em Limeira (SP), recebeu marmita com pele de galinha mastigada e osso roído em Pomerode (SC).
Mas nem tudo é drama. Dos bons caminhoneiros que encontra pelo caminho, recebe dinheiro ou comida que são a base de seu sustento. E conforme sua história passou a tomar os noticiários, aumentou o apoio de pessoas que deram pequenas ou grandes ajudas, de pares de tênis até bicicletas novas:
- Enfrentei muitos desafios e vi que muitas portas se fecham, mas muitas se abrem. Já me confundiram até com criminoso que tinha o mesmo apelido e quase acabei preso. Mas graças a Deus, tenho encontrado mais portas abertas do que fechadas.
Solidariedade em Nova Milano
Pernoitar em Nova Milano não era parte do itinerário do Neguinho do Asfalto, mas foi providencial. Pedalando desde Osório por quase 20 horas, estava esgotado e não encontrava um posto de gasolina para dormir em segurança em sua barraca. Por volta das 21h do último sábado, o casal Cristiano e Marília Bonalume, moradores de Nova Milano, passava pela RS-122, próximo à empresa Vonpar, e a luz forte da bicicleta chamou a atenção.
- Fizemos o retorno para ver o que era e encontramos ele exausto. Achamos estranho, mas ele se apresentou, mostrou o material que carrega com ele. Vimos que era uma pessoa do bem e o levamos para nossa casa. Foi até na missa com a gente - conta Cristiano (E, na foto).
Nos dois dias em que esteve com os Bonalume, Neguinho impressionou a todos com seus causos da vida andarilha.
- Contou que até comeu cobra, sapo, lagarto...esse tem muita história - diz André Bonalume, que abrigaria o Neguinho em sua última noite na localidade.
Na manhã de terça-feira, o aventureiro seguiu para Vacaria. Os próximos destinos seriam Lages, Pato Branco, Cascavel, Londrina, Maringá...e se não interrompê-lo, é capaz de dar todo o roteiro até 2021, quando pretende encerrar a longa viagem no Canadá. Um exagero, é verdade. Só os próximos meses estão planejados. Mas também é feita de alguns exageros a vida do Neguinho, que ainda não sabe o que irá fazer depois de cumprir a promessa, mas já pensa em aposentar a companheira:
- Quando voltar para o Mato Grosso do Sul, quero deixar minha bicicleta pendurada e fazer qualquer outra coisa. Pedalar, não vou querer mais, não.
Em Corumbá, esperam pelo Neguinho avós e tios, com quem ele fala quando tem crédito no celular. Por mais que insistam para que ele volte, só mesmo daqui a seis anos.
Ciclismo
Ciclista que cumpre promessa de passar 30 anos pedalando, Neguinho do Asfalto passa pela Serra
Sul-Matogrossense seguia para Vacaria quando foi acolhido por família de Nova Milano no último sábado
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