Responsável por colocar alimento na mesa dos brasileiros, a agricultura familiar, historicamente, vem passando por um processo de incertezas e de redução no país. Dados do último Censo Agro, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2017, apontam uma redução de 9,5% no número de estabelecimentos classificados como de agricultura familiar. O índice é em comparação ao penúltimo Censo, de 2006. Entre os dois anos de levantamento de dados, a agricultura familiar perdeu 2,2 milhões de trabalhadores, na contramão da agricultura não familiar, que criou 702 mil postos de trabalho.
Segundo o IBGE, um fator é o envelhecimento dos chefes das famílias, geralmente responsáveis também pela produção agrícola, ao mesmo tempo em que os sucessores optam por sair do meio rural. Mesmo assim, de acordo com os dados de 2017, apesar da redução, a agricultura familiar continua representando a maior parte dos estabelecimentos agrícolas do Brasil: 77%. Já em relação à população, também conforme dados do IBGE, até os 24 anos está o grupo de menor número, com 100.357 pessoas na agricultura, seguido por de 25 a 34 anos (469.068 pessoas), 35 a 44 anos (904.143 pessoas) e 55 a 64 anos (1.186.702 pessoas). A maior faixa etária com agricultores é entre os 45 e 54 anos, com 1.224.488 pessoas.
Os dados apresentados representam o cenário nacional de cinco anos atrás, mas a preocupação ainda é atual, principalmente pelo fato de não ter dados atualizados. Nem o governo do Rio Grande do Sul nem a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater/RS) têm dados que representem a problemática na sucessão familiar no rural.
— A sucessão familiar ainda é um desafio, porém, eu acredito que muito já tem evoluído neste sentido, mas ainda é um desafio a permanência do jovem no campo. O que a gente entende como importante nisso tudo: comunicação nas famílias, a comunicação entre os pais, os filhos, os avós, se o jovem terá autonomia na gestão das propriedades. A questão de infraestrutura, de tecnologia, a facilidade ao acesso a educação, a saúde, isso tudo são fatores que o poder público precisa investir para que incentive a permanência do jovem, para que ele perceba a importância da agricultura, principalmente a familiar, que é a agricultura que compõe a mesa dos brasileiros hoje. Eles precisam entender que são o futuro da agricultura familiar, a importância do papel que eles têm na sociedade — diz a diretora do Departamento de Agricultura Familiar e Agroindústria (Dafa) do governo do Estado, Bruna Fogiato.
É a agricultura que compõe a mesa dos brasileiros hoje. Eles precisam entender que são o futuro da agricultura familiar, a importância do papel que eles têm na sociedade
BRUNA FOGIATO
Diretora do Departamento de Agricultura Familiar e Agroindústria (Dafa)
Para a coordenadora estadual do Trabalho com a Juventude e Mulheres Rurais, Clarice Böck, a sucessão rural precisa ser trabalhada com os jovens e também com as famílias, que têm papel preponderante na tomada de decisão do sucessor.
— Para ele (o jovem) ficar no meio rural, precisa ser visto, precisa ter voz, precisa ter renda. A família tem papel preponderante na tomada de decisão do jovem de ficar ou não no rural. Se tu tem na família alguém que te desestimule, que diga que essa atividade é penosa, que não dá renda, que não dá lucro, é claro que o jovem vai procurar um outro espaço. Mas se tu tem na família alguém que diz pra ti "não, meu filho, minha filha, essa é uma oportunidade que tenha um negócio teu, que tu pode gerir e ter renda", aí o jovem vai querer ficar no rural. Precisa fazer um trabalho com as famílias para que elas tenham conhecimento da importância que é incentivar os filhos — defende Clarice.
Conforme a gerente regional da Emater, Sandra Dalmina, o órgão aguarda o Censo 2022 para ter dados mais atualizados. Ela aponta que, na Serra gaúcha, nos locais onde há oportunidade de ficar, com infraestrutura, os jovens acabam ficando. Além disso, Sandra nota que há um crescimento no número de jovens que seguem tocando a propriedade dos pais na região.
— Já vimos casos de muitos jovens que relatam que às vezes eles saem porque não têm a oportunidade, mas, considerando uma perspectiva geral, tem bastante jovem (permanecendo). Antes a gente imaginava que eles iam sair, mas hoje estão permanecendo e tem casos até que estão voltando — garante a gerente.
Experiência externa e retorno às origens
Uns nunca cogitaram sair. Outros quiseram ir para a zona urbana, mas deram uma chance para o rural. Também tem quem tenha saído e retornado um tempo depois. A pluralidade no perfil do jovem na agricultura na Serra compõe as diversas histórias no interior dos municípios. Inclusive com pessoas que não nasceram na região, como a agricultora de Gramado Luciane Brum, 28 anos. Ela foi criada no meio rural, mas na Zona Sul do Estado. Sem vontade de seguir os passos dos pais, Luciane veio para a cidade serrana em busca de oportunidades de emprego.
Através da hotelaria, Luciane se estabilizou, conheceu seu atual marido, Murialdo, e desde 2019 retornou para a agricultura, para ajudar o companheiro a tocar a produção de temperos, verduras e morangos. A parceria além do casamento deu tão certo que Luciane, com a ajuda da Emater, já está nos preparativos para a sua agroindústria de leguminosas, como batata doce e cenoura, além da produção de chips, um petisco saudável feito de produtos oriundos da agricultura, como da banana.
— Eu não imaginava voltar para a agricultura, mas é uma coisa que eu gosto. Meus pais sempre me deixaram livre para escolher se eu queria ou não ficar. Hoje noto que tenho mais liberdade e flexibilidade nos horários, se queremos sair no final de semana, ir em um bailão, conseguimos. Antes, quando trabalhava nos hotéis, não conseguia — conta Luciane.
A produção na localidade Várzea Grande abastece, além das casas, as escolas. Isso porque o casal produz também para a merenda escolar e é responsável por distribuir o arrecadado aos pontos de recebimento. Os planos futuros de Luciane, além da agroindústria, é de ir para uma propriedade maior, onde terão mais espaço para a produção e também mais facilidade ao acesso à água, uma dificuldade na atual propriedade.
Muita experiência mesmo aos 19 anos
A saída do campo nunca foi uma opção para a já tão experiente Celine Lerin, mesmo com apenas 19 anos. Quando mais jovem, se não estava cuidando das irmãs mais novas, Celine já estava no meio da plantação de cáqui, pêssego ou uva com o pai e a avó. A ideia de deixar a agricultura nunca teve espaço na vida dela, que também não se adaptou ao modo de vida das cidades.
— Eu estudei na cidade e não gostei. A visão é totalmente outra. Da visão que eu tenho, do que eu quero. A imagem (dos agricultores) é totalmente distorcida. Eles te incentivam a ficar (na cidade), não a voltar (para o campo) — acredita Celine, que tentou também trabalhar com turismo no Caminhos de Pedra, em Bento, onde mora, mas não se adaptou. Ela acrescenta que ficar escutando que os agricultores queriam matar as pessoas na utilização de defensivos foi o que mais desestimulou a estudar na cidade.
Eu estudei na cidade e não gostei. A visão é totalmente outra. Da visão que eu tenho, do que eu quero
CELINE LERIN
Estudante e moradora de Bento Gonçalves
Para treinar a responsabilidade, aliado a um projeto desenvolvido na escola onde estuda atualmente (Escola Família Agrícola da Serra Gaúcha), Celine iniciou o cultivo de morangos na propriedade da família. De acordo com ela, o pai acredita que é um bom início para entender como funciona o financeiro e os cuidados de uma propriedade.
— Ele me falou 'se tu vai assumir uma propriedade, tu tem que ter responsabilidade, então vamos começar com algo pequeno — compartilha.
Apesar de ser entusiasta do agro, a jovem entende que é privilegiada e que sua localidade tem a infraestrutura necessária para viver com as condições parecidas aos centros urbanos. Ela exemplifica que em outros lugares, não há estradas asfaltadas e escolas próximas, desestimulando o jovem a ficar no meio rural. A mãe de Celine, Eni, sente alívio ao ver que a propriedade vai seguir sendo tocada pela filha e que o trabalho hoje feito terá continuidade.
— Vamos ver se as outras pequenas (irmãs de Celine) vão seguir os mesmos passos.
Diálogo e apoio dos pais ajudaram na permanência
Assim como a jovem de Bento Gonçalves, Felipe Vieira, 19 anos e morador de Fazenda Souza, em Caxias do Sul, nunca se viu longe do meio rural. Parte disso, segundo ele, se deve pela abertura que sempre teve dos pais em colocar suas ideias e desejos em prática.
— Eu sempre tive muito amor pelo campo, então é algo meu de não querer sair daqui, porque, desde muito novo, eu ia para a lavoura. Qualquer assunto que tenho interesse em estudar e pôr em prática na propriedade, a gente sempre conversa para ver a viabilidade. Nunca é dito "não" sem antes ter uma conversa — relata Vieira, que hoje cria abelhas na propriedade familiar para a polinização.
"Uma caneta pesa menos que uma enxada"
Toda vez que ouvia esta frase, Guilherme Marini, 18 anos, pensava que estava certo e tinha mais vontade de sair da agricultura e não seguir os passos dos pais. Mas foi através de um pedido da mãe Neli e do pai Rogério que o jovem deu uma chance para o agro. Iniciou na EfaSerra, começou a abrir os olhos para a importância da permanência no campo e hoje, debate melhorias para a propriedade com os pais e defende suas ideias, como a cobertura verde, com a semeadura de aveia branca e nabo.
— Meu maior incentivo, com certeza foi meus pais. Meu pai às vezes pega no meu pé, que eu quero fazer umas coisas loucas, como a cobertura, porque ele pensa que, na idade dele, sempre foi daquele jeito, e eu estou vindo para mudar, de certo modo — destaca o filho de Neli.
Visível nos olhos e nas palavras, a mãe tem orgulho do filho, que deve tocar a propriedade, que já foi de quatro gerações, sozinho, tendo em vista que a filha mais nova, Amanda, não deseja ficar.
— A gente aprende muito com o Guilherme. Toda vez que alguém diz que colono é burro, isso machuca muito. Ele e esta geração estão aí para mostrar que a gente quer estudar, se aprimorar. Temos o caderno do campo no papel, mas também temos ele no computador — afirma Neli.