Ao passo que a pandemia acentuou o problema do desemprego no país, aumentou também a competitividade para quem busca entrar ou se reinserir no mercado de trabalho. Cursos e outros tipos de qualificações podem ser um trunfo perante os recrutadores, cada vez mais exigentes. Portanto, além de estar atento a oportunidades de emprego, a capacitação representa um diferencial. Mas como se destacar em um cenário financeiro de recursos escassos e protagonizado, muitas vezes, por outros tipos de vulnerabilidade? A resposta pode estar em alternativas gratuitas oferecidas por meio de iniciativas públicas e privadas.
— O curso profissionalizante traz muito da vivência, da prática, e se aproxima muito da realidade do mercado de trabalho. O profissional que está num curso deste formato consegue ter agilidade na resolução de problemas e entende como o mercado funciona. Por trazer essa parte mais prática, mais dinâmica, traz algumas habilidades interpessoais que geram um diferencial, como o trabalho em equipe, a capacidade de escuta e o cumprimento de prazos. Isso agrega bastante valor na hora da contratação e alavanca a carreira, além do que são valores que se leva para a vida inteira – aponta a psicóloga Mônica Carpes, responsável pela atração de talentos do Grupo Bloco.
Graças a um curso oferecido há dois anos em Caxias do Sul, Caroline Isabely Esberce, 23 anos, venceu as estatísticas e mudou o rumo da sua vida profissional. Sem perspectiva após concluir o Ensino Médio e tentando superar o preconceito no mercado de trabalho, ela, que é mulher trans, encontrou em uma capacitação gratuita da ONG Construindo Igualdade o impulso que faltava para se tornar cabeleireira. E, de lá para cá, há muito o que comemorar: foram quatro estágios e, hoje, uma rotina de atendimentos dividida entre Caxias e Marau.
— Eu sou do interior e não tive oportunidade de emprego por causa do preconceito. O curso me deu uma bagagem maravilhosa e me abriu muitas possibilidades – diz Carol, que, na época das aulas, ainda morava em São Marcos e foi a única da turma quatro alunos que chegou até o final da capacitação.
Os empecilhos encontrados por este público para ingressar no mercado de trabalho não é uma percepção exclusiva de Carol: um estudo denominado Demitindo Preconceitos, realizado em 2019 e com a participação de 230 pessoas, incluindo ativistas, especialistas e profissionais LGBT, revelou que 40% dos entrevistados já sofreram discriminação no trabalho. As situações descritas passam por fofocas, assédio moral, piadas sem consentimento, entre outros constrangimentos. Já a Pesquisa Nacional Sobre o Ambiente Educacional no Brasil 2016 identificou que 27% sofreram agressão na escola e 73% foram alvos de xingamentos em razão de sua orientação sexual.
Diante da evasão escolar e sem perspectiva de acolhimento em um ambiente profissional respeitoso, as alternativas se tornam escassas, conforme a diretora da ONG Construindo Igualdade, Cléo Araújo:
— A primeira exclusão que a gente sofre é da família, a partir daí, vem as outras, na educação, no mercado de trabalho, gera uma bola de neve. São oportunidades que são tiradas de nós. Mas, quando temos oportunidades no mercado formal, ganhamos dignidade, não só nós, do público LGBT, como qualquer pessoa – diz a ativista que recentemente ocupou uma cadeira na Câmara caxiense e se formará em Direito no ano que vem
“Para que essas pessoas tenham escolha”
O curso de auxiliar de cabeleireiro que mudou a vida da jovem Carol entrou, há alguns dias, na segunda edição. Desde o dia 4 de outubro, oito alunos, com idades entre 18 a 72 anos, têm a oportunidade de aprender gratuitamente técnicas como escova capilar, lavagem de cabelo, aplicação de produtos e manuseio de materiais e equipamentos.
Os ensinamentos serão repassados até meados de dezembro por quatro professores voluntários na casa da ONG Construindo Igualdade. Os encontros ocorrem de segundas a quartas-feiras, no período da tarde.
— É um meio que felizmente não tem tanto preconceito e, agora, com a volta dos eventos, eles conseguem ter um retorno satisfatório. O intuito do curso é que essas pessoas tenham escolha. Porque, muitas vezes, essa escolha foi retirada delas — aponta o idealizador e coordenador da iniciativa, Alisson Dallegrave.
As aulas são ofertadas em um miniestúdio que carrega os conceitos de solidariedade e união em sua essência: lavatório, cadeira e espelho foram doados pelos professores, que retiraram as peças de seus próprios salões. Já os secadores foram adquiridos com a verba obtida em um bazar realizado pela Level Cult. Os produtos utilizados na aprendizagem (no detalhe à direita) são doados pela London Cosméticos RS.
– Quando eu soube da ONG, através do meu marido que também é voluntário, eu comecei a mobilizar todo mundo que eu conhecia e, assim, conseguimos montar o espaço para que eles tenham aula – comenta Dallegrave.
Mais do que um espaço para aprender uma profissão e, logo mais, conquistar a independência financeira, o curso abre as portas para a diversidade. A intenção inicial era de que a capacitação fosse direcionada especificamente para a população LGBTQIA+ e mulheres vítimas de violência doméstica, mas uma voluntária da Cruz Vermelha também foi integrada ao grupo.
Uma das alunas é Éricka Ramos Antunes,47 anos. Natural de Santa Catarina, ela, que é mulher trans, mudou-se para Caxias ainda na infância. Hoje, ela ainda volta à terra natal para trabalhar periodicamente na animação de festas infantis como personagem vivo.
Apesar de ter experiência na área de Educação Física, Éricka relata que há dificuldade para se inserir na área em Caxias do Sul e, por isso, o curso de auxiliar de cabeleireiro mostrou-se uma boa opção para se especializar. Há algum tempo ela já havia iniciado um curso na área, mas teve que interromper diante do alto custo.
— Eu gosto muito da área de colorimetria e pretendo me especializar. Eu sou profissional de Educação Física, mas aqui em Caxias não tem mercado para nós, sinto bastante preconceito. Tenho um currículo superbom, já chegaram a me chamar, mas, por eu ser trans, não consegui — lamenta a aluna.
Reinvenção em um novo país
Foi depois de mostrar seus dotes culinários para uma amiga brasileira, durante uma recepção em casa que a venezuelana Johamel Alvarez Aguiar, 34 anos, resolveu investir na produção de doces caseiros em Caxias do Sul. Fazendo donuts, sonhos recheados e outras delícias típicas do seu país natal ela está conseguindo auxiliar na renda do marido que trabalha em uma metalúrgica e, ao mesmo tempo, ficar mais perto do filho Jeremias, 4 anos. A família, que mora no bairro Cruzeiro, atravessou o país e veio para o Rio Grande do Sul em 2019 em busca de tratamento médico para a criança.
Formada em Enfermagem na Venezuela, ela ainda não conseguiu validar seu diploma no Brasil e, por consequência, exercer a profissão a que dedicou três anos de estudos. No começo, ela conta que foi tomada por um sentimento de frustração, mas que logo se transformou em coragem para se reinventar e mudar o rumo da vida profissional em um novo país.
— Era uma profissão em que trabalhei oito anos na Venezuela, e eu amava. Eu sinto nostalgia da minha profissão. Mas não é porque eu não estou trabalhando como enfermeira que eu sou um nada. O conhecimento que eu adquiri ninguém vai me tirar. Eu posso seguir como empreendedora. É um motivo de orgulho para mim e agradeço tudo que tem acontecido para nós — diz a doceira.
Recentemente, Johamel participou de dois cursos gratuitos por meio da organização catarinense Círculos de Hospitalidade, que promove ações para refugiados e imigrantes. As capacitações, voltadas à comunicação e ao meio digital, têm auxiliado a empreendedora a apresentar melhor seus produtos nas redes sociais para, assim, conquistar mais clientes e aumentar a sua renda. Com desejo inquietante de sempre aprender algo novo, Johamel foi direcionada para um novo curso, também sem custo, onde está aperfeiçoando seu conhecimento sobre a Língua Portuguesa. A ideia é melhorar o idioma para, posteriormente, gravar vídeos e atrair audiência no perfil profissional.
Eu sinto nostalgia da minha profissão. Mas não é porque eu não estou trabalhando como enfermeira que eu sou um nada. O conhecimento que eu adquiri ninguém vai me tirar.
JOHAMEL, 34 ANOS
Além dos aperfeiçoamentos técnicos, outro fator que tem contribuído para encorajar a nova vida profissional da imigrante tem sido o acolhimento do povo brasileiro, em especial, dos caxienses. Antes de vir ao Brasil, Johamel e a família viveram no Peru, onde ela relata que foi vítima de xenofobia durante a venda dos doces.
— Eu saio vender na rua, às vezes, e as pessoas, mesmo não comprando, me agradecem e até desejam boas vendas. É uma coisa que me surpreende – diz Johamel.
Capacitar para dar autonomia
Outro projeto que busca ser um incentivo para a vida profissional de mulheres em situação de vulnerabilidade econômica começará em novembro em Caxias. Por meio de uma parceria da Coordenadoria da Mulher com a empresa Brinox, 15 alunas serão preparadas para atuarem como auxiliar de cozinha no projeto chamado Mulheres em Ação.
A titular da Coordenadoria da Mulher, da prefeitura de Caxias, a advogada Tamyris Padilha, explica que as participantes aprenderão técnicas, por exemplo, de corte e higienização de alimentos, além de utilização de equipamentos de proteção individual, em sete encontros.
As aulas também terão conteúdos voltados para a rede de proteção à mulher existente na cidade. As participantes terão orientações sobre como agir e a quem recorrer em caso de violência doméstica, entre outros incentivos.
Essa profissionalização é uma chave para a saída dos relacionamentos abusivos. É uma forma de elas terem autonomia e conseguirem romper com estes ciclos de violência
TAMYRIS, COORDENADORA DA MULHER
— É muito importante que elas tenham a oportunidade de ter uma fonte de renda, um emprego com carteira assinada. Na minha opinião, essa profissionalização é uma chave para a saída dos relacionamentos abusivos. É uma forma de elas terem autonomia e conseguirem romper com estes ciclos de violência — destaca Tamyris.
A expectativa é de que ao menos mais duas turmas sejam montadas em 2022 em datas a serem definidas. As aulas serão direcionadas, neste primeiro momento, para as atendidas na rede de proteção à mulher da cidade. Portanto, essa capacitação ainda não encontra-se aberta à comunidade.
Portas abertas para o mercado profissional
Conciliar as rotinas de trabalho e estudos até assustou a estudante Alexandra Tibolla, 15 anos, no começo, mas não foi capaz de fazê-la desistir do programa Ser Jovem Cidadão. A adolescente integra o projeto promovido pela prefeitura de Caxias do Sul, com execução da Fundação de Assistência Social (FAS) e apoio da Superintendência Regional do Trabalho do RS e do Senac Caxias.
Ao todo, o projeto Ser Jovem Cidadão vem dando a largada profissional na vida de 30 jovens desde o mês de julho. O grupo é formado por meninos e meninas com idades entre 14 e 18 anos que já participavam de programas de assistência social do município.
Funciona assim: eles aprendem conteúdos teóricos em uma aula semanal no Senac. A prática é realizada de forma pioneira nas secretarias municipais da prefeitura de Caxias e nos serviços ligados à FAS. A profissionalização segue até 3 março de 2023, de segunda a sexta-feira, com duração de quatro horas diárias. Os jovens recebem um auxílio de meio salário mínimo e vale-transporte, além de 13º salário e parte do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Nesse período, eles também precisam continuar os estudos regulares.
Alexandra trabalha no prédio da FAS, no setor de licitações, e está tendo sua primeira experiência profissional graças ao projeto. Ali, ela aprende diariamente sobre as rotinas administrativas. A jovem, que é moradora do bairro Santa Catarina, conheceu o programa no Serviço de Convivência Nossa Senhora da Paz, onde fazia atividades.
— No começo, foi meio complicado mudar a rotina, mas agora tudo se ajeitou. Está sendo uma experiência bem boa, um caminho que vai ajudar mais para frente — comenta Alexandra, que deseja se alistar para o Exército quando completar 18 anos.
Para a presidente da FAS, Katiane Boschetti da Silveira, o programa é um incentivo para diminuir a evasão escolar e para a erradicação do trabalho infantil, principalmente entre as famílias em situação de vulnerabilidade — em agosto, havia 70.680 pessoas inscritas no Cadastro Único, que vivem com ganhos de meio salário mínimo (equivalente a R$ 550) até três salários mínimos (R$ 3,3 mil) de renda bruta familiar.
— Não só esse, como todos os cursos de jovens aprendizes, eles ajudam a diminuir a evasão escolar, porque eles têm que continuar estudando, contribuindo também dessa forma para não haver o trabalho infantil. Cada participante tem um monitor, que é um servidor da prefeitura preparado para trabalhar com eles. Esses monitores vão nos relatar se eles faltarem no Senac ou na experiência prática e nós vamos ver o que está acontecendo junto às famílias deles — explica Katiane.
ONDE BUSCAR APOIO
Banco do Vestuário
Oferece mensalmente, de forma presencial, capacitações sem custo voltadas à indústria têxtil, como oficinas de tricô e crochê, curso de modelagem, técnicas de costura, entre outras. É preciso ficar atento ao período de inscrições de cada atividade, por meio do site da prefeitura de Caxias do Sul. O endereço é Rua Francisco Camatti, número 792, no Bairro Madureira. O telefone é o (54) 3901-1457
Instituto Rosa Del Este
Inaugurado em março, presta atendimento gratuito a pessoas vítimas de violência, inclusive com oferta de oficinas e cursos. Atualmente, 27 mulheres são atendidas, mas os trabalhos são direcionados para pessoas de todos os gêneros. A coordenadora, Janaína Menegassi do Nascimento, explica que há um trabalho de preparação e entendimento do perfil de cada usuário antes da inserção nas capacitações. O instituto oferece, por exemplo, oficina de costura e curso de vendas, mas a entidade também encaminha e auxilia para capacitações em outras áreas profissionais, fora do espaço. O Instituto Rosa Del Este está localizado na Rua Marquês do Herval, 976, Centro, e aceita doações para manter as atividades por meio do Pix 40.117.900/0001-38. O telefone para contato é o (54) 3698-9946.
Senac Caxias
Atualmente, está com uma turma fechada para o curso gratuito e presencial de Técnico em Marketing. A oferta de capacitações sem custo pode ser acompanhada pela página Senac Caxias do Sul, no Facebook, ou pelo telefone (54) 3225-1666.
Projeto Talento Júnior
É um curso online e gratuito de preparação para o mercado de trabalho com duração de 40 horas. É voltado para adolescentes (a partir de 14 anos) e adultos em situação de vulnerabilidade social. Os conteúdos tratados são: desenvolvimento profissional, informática e inglês básicos. As aulas ocorrem durante o perído da tarde, por duas semanas, pela plataforma Zoom, com acesso via celular ou computador. A capacitação é oferecida pelo Instituto Cidade Júnior, do Paraná, com apoio do grupo caxiense Ação do Bem, da UniCesumar e da Associação de Moradores do Bairro (Amob) Reolon. A próxima turma inicia em 8 de novembro. As vagas são limitadas e as inscrições podem ser feitas pelo WhatsApp (41) 9.9960-0748. Segundo a diretora de projetos do Cidade Júnior, Rejane Bressan, a intenção é que em 2022 o curso possa ser oferecido no formato presencial em Caxias.
IFRS
O Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS) mantém em sua plataforma online quase cem opções de cursos de extensão gratuitos, em diferentes áreas e com distintas cargas horárias. O cadastro e as opções podem ser conferidos no site moodle.ifrs.edu.br.
FGV
A Fundação Getúlio Vargas (FGV) oferece mais de 100 cursos gratuitos, no formato online, nas áreas do Direito, Marketing e Vendas, Tecnologia e Ciência de Dados, entre outras. Para ver as opções, basta acessar educacao-executiva.fgv.br/cursos/gratuitos. Após concluir o curso e obter nota igual ou superior a 7 em um teste, é possível gerar uma declaração de participação (não é certificado).