O fechamento da Melitta em Bom Jesus é assunto em qualquer local que se entre na cidade. Isso porque todo mundo tem algum parente ou conhecido que trabalha ou já trabalhou na empresa. Com o encerramento das atividades previsto para o dia 10 de dezembro, a maior preocupação é com a perda dos empregos. São 79 diretos e 31 indiretos.
Pelo menos outros seis funcionários já haviam sido desligados em julho deste ano mas, segundo a companhia, sem relação com o processo de saída do município. Eram vendedores como seu Vilmar Silveira Bon, 59 anos. Ele conta que atuou por 29 anos na empresa. Ingressou para o quadro em 1988, quando ela ainda se chamava Café Bom Jesus, indústria de beneficiamento do grão fundada pela família Rocha em 1963. À época, o jovem Vilmar tinha 26 anos e havia passado por uma serraria e por uma loja de confecções. Um dia, conversando com um dos fundadores da Bom Jesus, em tom de brincadeira, pediu uma vaga. Dias depois, o empresário ligou para ele oferecendo uma oportunidade como vendedor. Ele aceitou na hora.
— A Bom Jesus era uma empresa muito bem conceituada na região. Tinha boa aceitação do produto. Sempre teve ligação forte com a cidade, inclusive, traz o nome — considera o ex-funcionário.
A Melitta comprou a unidade da Café Bom Jesus há quase 16 anos, no início de 2006. O valor envolvido não foi confirmado mas, à época, o mercado informou algo em torno de R$ 15 milhões na aquisição da operação. A Bom Jesus tinha 70 funcionários, número que cresceu cerca de 15% nesse tempo. A empresa foi fundada em 1963 pela família Rocha, natural da cidade que deu nome ao produto. Vilmar relata que acompanhou o processo de aquisição da Bom Jesus pela Melitta:
— A Melitta não conseguia entrar na Serra. Aí, eles optaram por comprar a marca e foi o que aconteceu. Os donos da Bom Jesus já queriam vender também. Uniram o útil ao agradável.
O ex-colaborador lembra que a aquisição trouxe benefícios. O salário aumentou, o plano de saúde ficou mais completo e, enfim, a vida dele melhorou. O trabalho de Vilmar era percorrer o comércio local – lancherias, mercados, restaurantes e hotéis, entre outros – para efetuar a venda do produto. O volume de vendas da empresa na cidade girava em torno de quatro a cinco toneladas por mês, segundo ele. Como vendedor, também levou a marca para cidades como Pelotas, Rio Grande, Passo Fundo e Santa Maria.
— A cidade perde em empregos. São mais ou menos 120 funcionários que dependiam dali. Sempre dá um impacto, já que aqui não temos grandes opções. O que temos mais é pecuária, lavoura, pomares de maçã... Fábricas são poucas — pondera.
Com o que conseguiu juntar do salário, Vilmar resolveu empreender. Abriu uma revenda de gás em 2018 que era cuidada pelo filho até ele ser desligado. Agora, mesmo aposentado, disse que vai se dedicar ao negócio.
Vínculos de amizade, quase como uma família
Para o operador de empilhadeira, Luiz Cláudio Pinheiro da Rosa, 47, o desligamento está previsto para o dia 10 de dezembro. Lá se vão 18 anos desde que deixou o trabalho nas lavouras de batata e maçã e entrou para a empresa, à época, como auxiliar. Ele diz que foi na Melitta que conseguiu crescer profissionalmente.
— A gente ficou meio abalado porque está acostumado a ter uma vida aqui dentro, mas é vida que segue. Eles não têm tendência de voltar para Bom Jesus. Então, é um ciclo que se acaba, e bola para frente. Mas é complicado, o impacto é bem forte. Vai chegar o momento em que vou perder essa família que estou aqui junto todo o dia, criamos um vínculo praticamente como irmãos — lamenta o funcionário.
Com o trabalho na Melitta, Luiz criou os três filhos. E tem mais gente da família trabalhando no local, um sobrinho dele. O valor da rescisão deve ser investido na compra de um caminhão para trabalhar como autônomo. Ele pretende ficar na cidade.
Mas essa não é a tendência entre os jovens que ainda não formaram família. Com o fechamento da maior indústria em estrutura do município (uma serraria teria mais empregados, segundo a prefeitura), muitos vão buscar oportunidades em grandes centros urbanos. Assim como pessoas que foram atraídas pelo emprego na fábrica agora já pensam em deixar Bom Jesus.
Para alguns, alternativa é sair de Bom Jesus
É o caso de Cleiton Barbosa Cassão, 21. Ele e o pai vieram de Canoas, há oito meses, e se estabeleceram na cidade. Ambos trabalham em empresas que prestam serviços para a Melitta. O grão vem de Minas Gerais, é torrado, moído e embalado em Bom Jesus. No local também funciona uma fábrica de filtros. Dali, os produtos são transportados para o o Centro de Distribuição em Farroupilha. Cleiton faz o carregamento dos pacotes de café nos caminhões.
Após o anúncio da saída da indústria do município, a empregadora disse que vai desligar os oito funcionários e encerrar as atividades. Diante disso, Cleiton planeja ir para São Paulo com o pai em busca de oportunidade.
— A gente trouxe mudança, alugamos uma casa aqui e vamos ter que entregar tudo agora — comentou o jovem.
O colega, Carlos Evemar Pereira, 18, lamenta a perda do primeiro emprego. Natural de Bom Jesus, ele entrou para a terceirizada há três meses.
— Somos prejudicados também, as empresas terceirizadas e os funcionários. Até o momento, a oportunidade que temos em Bom Jesus é na lavoura ou pomar. Ou, então, temos que sair daqui e procurar um polo, outro lugar. Claro que isso impacta na cidade porque várias pessoas vão embora, mas é o que tem. Não temos como ficar em Bom Jesus porque a única empresa grande que ofereceu oportunidade é a Melitta — comenta o jovem que pretende buscar emprego nas indústrias metalúrgicas de Caxias ou na Região Metropolitana.
Impacto também no comércio e no consumidor
Um outro efeito da saída da Melitta de Bom Jesus já é sentido pelo comércio e pelos consumidores da cidade. Edson Madeira, 56 anos, tem um supermercado há uma década na cidade e relata duas mudanças, na forma de adquirir o produto, com o desligamento dos vendedores, e no custo.
— Comprávamos o café só por meio dos vendedores. Até porque é uma quantia grande e eles conseguiam preço bom e bonificações. Quando o vendedor saiu, nos avisou e procuramos os atacados, principalmente de Caxias do Sul, que representam o Café Bom Jesus, que é uma tradição aqui para gente e que vende sempre muito bem. Mas, agora aumentou o custo porque tem esse lucro deles. Então esse custo adicional que pagamos, no final, o consumidor que arca com essa despesa a mais que temos — explica Madeira.
Ele compra cerca de 500 quilos do café por mês. Com a mudança no processo de aquisição, o pacote de 500 gramas que antes era vendido a R$ 11,99 passou para R$ 13,99 na prateleira.
— O pessoal de mais idade que sentiu mais (o anúncio do fechamento) por que é uma firma de muitos anos. E, o que as pessoas mais comentam é que sentem pela mão-de-obra que será dispensada. Eu mesmo tenho três ou quatro funcionários que saíram daqui para ir trabalhar na Melitta — comenta o empresário.
Prefeitura busca empreendedores para a cidade
A maior preocupação de Bom Jesus, e que tem o foco da administração municipal, tem relação direta com a perda dos empregos dos 110 funcionários da Melitta: é atrair empreendedores para gerar oportunidade de trabalho e, com isso, estancar a saída de moradores que buscam oportunidades em outras cidades.
— Os funcionários têm um amor muito grande por essa empresa e para nossa cidade é uma perda muito grande. Mas, sabemos que como é uma multinacional, infelizmente, as questões são financeiras e de logística. Eles colocaram tudo isso na balança. Já vinham planejando isso desde 2018, quando abriram a fábrica em Varginha, em Minas Gerais, de tirar a fábrica daqui e levar para o outro estado. O município que perde. Mas acredito que esses funcionários vão conseguir se encaixar aqui na cidade com a vinda de novas empresas porque são profissionais muito qualificados — disse a prefeita Lucila Maggi.
Possibilidades não faltam conforme a prefeitura nos setores do turismo e da própria indústria, pouco expressiva no município que tem como base da economia o setor primário (agricultura e pecuária).
Segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do governo federal, enquanto a indústria de transformação de produtos alimentícios tinha 101 empregos formais em janeiro de 2019 (dado mais recente disponibilizado), tendo contratado 27 pessoas e demitido 28 em todo aquele ano, o setor de agricultura, silvicultura, criação de animais e extrativismo vegetal tem registro de 1.137 empregos formais naquele mesmo mês, 4.120 admissões e 4.054 demissões no ano inteiro de 2019.
Apesar da diferença de volume de postos de trabalho, é possível verificar que mesmo o setor primário não gerou saldo positivo significante de contratações. Isso porque a maioria delas ocorre de forma temporária nas épocas de colheita de frutas e de legumes, principalmente a maçã e a batata, culturas preponderantes no município.
— O que está no nosso plano de governo é fazer do turismo uma fonte de arrecadação, de renda, de manutenção das tradições e da gastronomia. Agregar a manutenção das pequenas propriedades, com toda a parte cultural de fabricação de produtos típicos. Temos muita produção de pequenos frutos que não está sendo explorada porque não temos nenhuma fábrica de geleia e de sucos, por exemplo, e a matéria-prima está aqui. Temos aqui vários produtos, a uva, a maçã, mirtilo, ameixa, vendidos a granel sem valor agregado. Temos plantação de butiá, lúpulo, oliveira. Temos o azeite Gaita, produto local. É um setor que está totalmente aberto para ser explorado tanto no aspecto turístico quanto econômico — ressalta Adriana Vieira Varella, secretária de Turismo, Desenvolvimento Econômico e Inovação de Bom Jesus.
— O café vem de longe, a nossa maçã está aqui e é levada para São Paulo para fazer o suco, o vinagre. Temos esse pensamento e queremos levar para os produtores e incentivar talvez a criação de uma indústria de vinagre, suco, chá de maçã — projeta a prefeita.
O olhar do município também está voltado para o queijo artesanal serrano, produto tradicional da cidade, e para produtos oriundos da madeira como os pallets (estrados) e pellets (pequenos filetes feitos a partir da serragem para uso em lareiras). Entre as empresas já instaladas, uma indústria madeireira que está expandindo os negócios deve abrir 45 novos postos de trabalho.
— Muitas empresas do ramo madeireiro têm nos procurado por causa da logística, com a inauguração da Serra da Rocinha, a BR-285, a proximidade de levar até os portos para exportação. Vamos na Fiergs na semana que vem. Também já fizemos contatos com alguns empreendedores. Acredito que vai dar tudo certo — comentou a prefeita.
Área deve ser destinada a instalação de novas indústrias
A estrutura onde está instalada a Melitta deve ser desocupada até maio do ano que vem. O município tem interesse no prédio para colocá-lo em negociação com novas indústrias. Além disso, pretende criar uma espécie de distrito industrial. De acordo com a prefeita, seis empresas sinalizaram interesse em se instalar na cidade. A prefeitura está preparando uma área e enviou à Câmara de Vereadores um pedido de autorização para ceder terrenos. Ainda, está elaborando um edital para regrar o processo de instalação e prevê a concessão de incentivos fiscais. Chance também para quem é da cidade e quer empreender.
— Quem sabe está aí a oportunidade, em deixar o emprego, de empreender e quem sabe proporcionar novos empregos — pondera Recilia Ferreira Madeira, secretária da Fazenda.
A Secretaria de Turismo aposta na diversificação de investimentos e na facilidade de logística com a proximidade de Bom Jesus do porto e a conclusão das obras da BR-285 no trecho entre São José dos Ausentes e Santa Catarina nos próximos anos.
— Acho muito importante diversificar. Até mesmo no turismo que estava muito agregado às belezas naturais, mas temos uma parte histórica cultural riquíssima. Tem um pessoal que vai montar o caminho dos tropeiros, que passa pela história, por cachoeiras, cavernas indígenas. Tem que agregar tudo isso. O turismo está muito ligado ao desenvolvimento econômico e à agricultura — disse Adriana.
A saída da indústria não gerou impacto na arrecadação municipal porque as notas da empresa, desde que foi adquirida pela Melitta, em 2006, já eram emitidas no Centro de Distribuição em Farroupilha, ou seja, os impostos não eram recolhidos para Bom Jesus e, sim, para o município da Serra. Contudo, os salários das 110 famílias que tinham a empresa como fonte de renda não serão mais injetados na economia local.
— Claro que essa notícia foi triste para toda a cidade, comoveu a todos, porque é um empresa que fecha as portas e porque é uma empresa que tem uma história na cidade. Todo mundo tem orgulho de dizer "sou de Bom Jesus, do Café Bom Jesus". O bairro inteiro ali sentia o cheiro do café por toda a vida. Agora, isso ter um ponto final, para nós, é bem triste. Os funcionários ficaram bastante abalados. São todas famílias da cidade, pessoas conhecidas. Foi uma notícia inesperada para todos nós, mas, enquanto Poder Executivo, temos que ir em busca de alternativas — argumenta a prefeita.
Melitta diz que manterá bolsa de estudos para funcionários até conclusão de cursos
A Melitta informou, por meio da assessoria de imprensa, que sabe que esse é um momento delicado para todos, embora a decisão de encerrar as atividades em Bom Jesus tenha sido necessária para apoiar o desenvolvimento da companhia no longo prazo, levando em conta fatores logísticos, de produtividade e de custos de fabricação. Reiterou que o mercado do sul é extremamente importante para a companhia e o foco é continuar crescendo na região.
A empresa não divulga dados de produção, por estratégia de negócio, apenas diz que a unidade será integralmente transferida para Varginha, em Minas Gerais. Contudo, o abastecimento da região continuará sendo realizado pelo centro de distribuição de Farroupilha. A Melitta garante que tomou todas as providências para que não haja desabastecimento e que a transferência não impactará na qualidade do produto e tampouco na oferta e serviço aos consumidores ou atendimento aos clientes.
Sobre os desligamentos, informou que avisou os funcionários de Bom Jesus com antecedência justamente pensando em ajudar no período de transição. Para além das obrigações trabalhistas, os colaboradores receberão valores adicionais referentes a remuneração e participação dos resultados, além da extensão do plano de saúde, inclusive, para os dependentes. A indústria disse ainda que os funcionários terão apoio de consultorias especializadas para suporte emocional e recolocação de mão de obra e o programa de Bolsa de Estudos será mantido para quem já faz parte dele até a conclusão do curso. Até o momento, cerca de 30 colaboradores da unidade foram beneficiados.
Sobre a possibilidade de absorver os funcionários de Bom Jesus em outras unidades, a empresa disse que uma transferência de operação como essa requer um planejamento e revisão de estrutura que nem sempre se encaixam exatamente em outra planta. Mas, disse que, caso surja alguma vaga cujo perfil seja compatível ao do colaborador, ele poderá se candidatar, passando pelos processos de recrutamento interno.