Cortando o país sobre rodas, caminhoneiros viram as nuances regionais de comportamento das pessoas e da pandemia ao longo dos últimos 14 meses. Se até o final de março de 2020 viajar pelo Brasil era um desafio pelas más condições das estradas, pelas saudades de casa e pela própria insegurança, a partir de então adicionou-se a preocupação com a saúde. Pegar a covid-19 significa ter os sintomas longe de qualquer familiar ou amigo. O principal modal de transportes do país também sentiu impactos provocados pela redução da atividade econômica, embora amenizados por novas condições de mercado, como as vendas online.
A 6ª rodada da pesquisa de Impacto no Transporte _ Covid-19, divulgada em abril pela Confederação Nacional do Transporte (CNT), aponta que 42,3% das empresas de transporte rodoviário de cargas participantes acreditam que vão fechar 2021 com prejuízos e 28,7% já adotaram demissões neste ano. Por outro lado, 41,6% avaliam a situação atual de suas empresas como satisfatória e dados da própria CNT mostram que o primeiro trimestre fechou com aumento no número de empregos, o que pode ser resultado da recontratação dentro do próprio setor. No país, foram 33.768 vagas criadas e no RS, 1.929.
Na Serra, o Sindicato dos Rodoviários de Caxias do Sul e Região, que representa empregados do setor, que inclui trabalhadores do transporte de cargas e de passageiros, teve 1,5 mil demissões de um total de 5 mil profissionais. Conforme o presidente da entidade, Tacimer Kullmann da Silva, o impacto foi semelhante para os profissionais de ambas as áreas.
— Estávamos com uma dificuldade bastante grande (no início da pandemia). Quando se liberou o trabalho, começou a se reerguer (a demanda). Veio essa onda de novo e demorou um pouco para se reerguer, mas está se reerguendo agora. Temos de ver se não vai parar tudo novamente.
O Sindicato dos Transportadores Autônomos de Bens de Caxias do Sul (Sindicam) tem uma percepção diferente. De acordo com o presidente do Sindicam, Selézio Panisson, o relato dos caminhoneiros que trabalham por conta própria é de uma condição aquecida de mercado:
— Os que vêm aqui (no Sindicato) e a gente conversa não pararam de trabalhar. Dizem que faturaram mais na pandemia do que quando não tinha a pandemia. O que acontece é que os mais velhos se resguardaram e sobrou mais serviço para aqueles mais jovens —comenta.
Vendas online e o 'boom' das commodities
O professor Felipe da Silva Medeiros, do Campus Caxias do Sul do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), analisou dados da Empresa Gaúcha de Rodovias (EGR) sobre o trânsito de veículos comerciais e percebeu que, no primeiro trimestre deste ano, aumentou 10% a quantidade daqueles que passaram pelas estações de cobrança de pedágio na comparação com igual período de 2020. O número inclui transporte de cargas e de passageiros e representa um recorte que ajuda a analisar o comportamento do setor.
O engenheiro, que já atuou na Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), avaliou ainda números de duas concessionárias responsáveis por trechos das principais rodovias do país e percebeu o seguinte movimento: queda expressiva no final de março e abril de 2020, recuperação em maio e patamares acima da pandemia a partir de novembro.
— O transporte de cargas se recuperou e já estamos em níveis melhores que antes da pandemia. Isso é resultado de oportunidades que apareceram com a própria pandemia.
Uma dessas oportunidades é o comportamento do consumidor. O distanciamento social exigiu uma rápida adaptação, com aumento das compras online. Isso, diz o professor, ocorreu tanto do ponto de vista dos grandes varejistas quanto das lojas menores, que tiveram de migrar para o mercado virtual e puderam, inclusive, expandir as vendas para fora da região geográfica em que ficam. Medeiros explica ainda que o Brasil tem se beneficiado do chamado 'boom das commodities', com aceleração da venda de produtos como minério de ferro, carne, soja e milho.
Caminhoneiro viu na estrada as diferenças
Caminhoneiro há uma década e meia, Márcio Francisco Palaver, 37 anos, pôde acompanhar na estrada os efeitos da pandemia em diferentes lugares do Brasil. O morador de Garibaldi costuma fazer o trajeto de ligação da Serra Gaúcha até o Rio de Janeiro em uma viagem que demora em média de cinco a seis dias.
O relato de Palaver sobre a movimentação no transporte de mercadorias parece semelhante às curvas de contaminação. Não no mesmo ritmo, é claro, até porque os efeitos nem sempre são sentidos imediatamente, mas com um comportamento de altas e baixas:
— O que percebi no começo foi uma espécie de pânico, uma incerteza. O que se refletiu bastante na parte do transporte foi que parou, deu uma quebra geral. A empresa que eu trabalho diminuiu o ritmo, mas não parou completamente. Mas conheço amigos que ficaram 40 dias parados, porque não conseguia nem carga para remédio. Era tudo uma insegurança de comprar, vender, fazer a economia girar.
Na metade de 2020, ele percebeu uma retomada da atividade. Com as formas de transmissão mais conhecidas e com o entendimento disseminado de que era preciso reavivar a economia, o caminhoneiro percebeu na entrada de junho um novo vigor:
— Vendeu, vendeu, transporte para cima e para baixo. Tinha bastante carga para subir e descer. Estava indo bem o negócio. Aí pega o fim do ano, dá aquela baixa normal. Muita gente faz compra para estocar. Esse ano entrou mais devagar. Passando o Carnaval, deu uma movimentada. Agora baixou de novo —conta.
Cruzando o Sul e o Sudeste do país, Palaver também viu as diferenças de comportamento dos moradores de cada região e de estratégias governamentais para o combate à covid-19:
— De um modo geral, as ordens que são dadas são parecidas: distanciamento, máscara, higienização com álcool. Mas o que percebi é que o Rio Grande do Sul e Santa Catarina tiveram tudo fechado. São os Estados onde mais tiveram serviços mais reduzidos, onde eu percebi que tinha que ter mais atenção e se organizar melhor. Paraná teve também, mas não tanto. São Paulo e Rio de Janeiro, menos. Não vou te dizer que um está certo e outro errado. Havia muita informação e pouca certeza.
O risco de estar na estrada para a contaminação, avalia ele, não é tão grande. Mesmo que passe por diferentes Estados e cidades, o caminhoneiro fica boa parte do tempo sozinho na boleia do caminhão. Palaver diz que a maior preocupação não é com a própria saúde, mas sim com a possibilidade de contaminar a esposa, a filha ou os pais. Outro desafio foi a desconfiança que enfrentou principalmente no início da pandemia:
— Quando começou a se falar de covid, de "vamos fechar", quando a gente ia para um restaurante, os que estavam abertos tu via um receio, como se estivesse contaminando alguém pelo fato de estar em muitos lugares diferentes. Era um medo instalado nas pessoas pela incerteza do que estava acontecendo.
Preocupações e cuidado na volta pra casa
Em abril do ano passado, Eloir Ramos de Souza Pena, 52 anos, perdeu o paladar quando estava em Salvador, um dos destinos para onde viaja como caminhoneiro de uma transportadora de Farroupilha. Na época, este sintoma não era tão conhecido como uma indicação de contaminação pelo coronavírus e, por isso, ele não fez o teste. Se foi contaminado, teve sintomas leves. Mas, o temor em relação ao contágio pelo vírus que assombra o mundo continua.
Esses profissionais rodam o país para entregar os mais variados produtos, conhecem diversos lugares, param nas mais diferentes paisagens, conversam, conhecem todos os sotaques, mas, na verdade, estão sozinhos na estrada. Adoecer significa ausência das pessoas próximas em um momento de alta vulnerabilidade, ainda mais quando essa condição envolve risco de contaminação e, por isso, isolamento do paciente.
— É maior ainda o medo da gente. Além de estar sozinho e poder se contaminar, cair no hospital, sem poder vir um parente para poder cuidar — comenta o morador de Bento Gonçalves.
Souza passa, em cada viagem, uma média de duas semanas fora de casa. Além de Salvador, vai para Aracaju, Maceió e Recife, todas capitais de Estados do Nordeste. O caminhoneiro conta que o comportamento das pessoas em relação à prevenção da covid-19 muda de um local para outro, mas que tem como preceito manter os cuidados básicos, como a higienização constante das mãos, o uso de máscaras e o distanciamento físico.
A movimentação, de acordo com ele, foi variável ao longo da pandemia, com redução maior no início, inclusive em relação ao fluxo nas estradas e aos serviços rotineiros. Na época, diz o caminhoneiro, houve dificuldade até para conseguir lugar para comer.
— A gente passava fome com dinheiro no bolso. No começo, no ano passado, março, abril, foi bem fraco, tanto em fluxo de carga. E, na estrada, parecia que você estava sozinho. Agora já está mais próximo do normal. Não está 100%, mas 70% e 80% já voltaram.
As paradas para o almoço, inclusive, ganharam uma nova estratégia durante a pandemia: ocorrem durante horários de menor movimento para evitar o pico de pessoas dentro do ambiente. A preocupação não é apenas consigo, mas também com a família. A casa dele e da esposa fica aos fundos da residência da mãe, de 73 anos. Embora a matriarca já esteja vacinada, os cuidados continuam:
— Agora, estou um pouco mais tranquilo, mas ainda não entro na casa dela. A gente se cumprimenta de longe —comenta o caminhoneiro, que exerce a profissão desde os 18 anos.
Na cabine com os motoristas
A Randon Implementos encontrou uma forma criativa para estabelecer uma relação de proximidade com seu principal público alvo, os caminhoneiros. Mais do que uma campanha promocional, explicando os atributos da marca, a empresa desenvolveu o projeto de uma websérie dividida em quatro episódios. A produção, chamada Randon Na Estrada, está sendo veiculada no canal da Randon Implementos no YouTube e nas páginas das redes sociais da companhia.
— Queremos transmitir nosso olhar de futuro, atuando para estar cada vez mais perto do nosso público, desenvolvendo soluções e experiências diferenciadas para os transportadores — destaca Sandro Trentin, diretor-geral da Randon Implementos.
O primeiro capítulo dessa série acompanha a viagem do caminhoneiro caxiense Kiko Bonesi, que tem mais de 30 anos de carreira, pelas estradas do Ceará. A jornada inicia-se em Irauçuba, no sertão cearense, e segue até a Praia de Flecheiras. Kiko também é influenciador digital e mantém um canal no YouTube, onde publica suas andanças Brasil afora. Lá pelas tantas, ele explica a si mesmo e no que acredita ser a melhor maneira de conduzir pela estrada da vida:
— Honestidade, humildade e humor, são os três "agás" importantes na nossa vida.
O episódio de 18 minutos conta os bastidores de uma viagem de caminhoneiro. Em grande parte do vídeo, Kiko está ao volante. Entre uma explicação e outra sobre os benefícios de guiar um caminhão com baú da Randon, ele também chama a atenção para os perigos de se guiar na chuva. Ele parece à vontade com mais de uma câmera filmando seus movimentos e seu discurso. Aliás, tão à vontade que não resiste às inevitáveis brincadeiras e jargões:
— Não viaje na maionese, viaje com Kiko Bonesi — diz, logo nos primeiros momentos do vídeo.
Em outro momento da série, o caminhoneiro faz uma revelação.
— Tenho longa história junto à Randon, quando tinha uns 18, 19 anos, trabalhei como servente de pedreiro e ajudei a empilhar tijolos para construir um dos prédios da Randon — diz, com orgulho.
Kiko conta que tem uma relação estreita com a máquina e brinca que, no seu sangue, corre óleo diesel.
—Viajar é a minha paixão, por mais que rode sempre tenho um sonho para realizar. Quero deixar um legado. Quero ouvir as pessoas falando que são hoje profissionais, que estão na estrada, por causa do Kiko — revela.
Apesar de amar o que faz, de sentir-se feliz a bordo do seu caminhão, explica que as condições das estradas, de uma forma geral, não são boas.
— O Brasil tem muito a melhorar quanto à estrutura das estradas — diz, resignado.
Mais ao final do trecho, entre Irauçuba e a praia de Flecheiras, Kiko precisou percorrer um trecho em terra de chão e aproveitou para discorrer sobre os benefícios de guiar um equipamento seguro e eficaz. Se a parte ruim do seu trabalho envolve os desafios que precisa encarar com a falta de infraestrutura, qual seria a melhor parte?
— O melhor de viajar é conhecer vários lugares e várias pessoas. A comida é diferente, os temperos diferentes, o sotaque diferente. Sem me dar por conta, estou no sul e falo "ôxe" ou "eta gota serena" ou, quando estou no nordeste, falo "tchê", ou ainda "mano" para o pessoal de São Paulo. A gente absorve tudo isso — explica.
Desde criança, Kiko sonhava ser caminhoneiro.
— Eu pegava a tampa de panela e saía na imaginação, como se estivesse dirigindo um caminhão, o motor eu fazia o som com boca — conta.
Ao fim, a série acaba por contemplar e valorizar uma das profissões mais relevantes no Brasil, que pouco ou nada foi interrompida mesmo durante os picos da pandemia de covid. Esse leva e traz de caminhoneiros Brasil afora carregando alimentos, medicamentos, peças, matéria-prima e um sem fim de itens, muitas vezes, sequer é lembrado enquanto consumidores estão abastecendo os carrinhos no supermercado. A quem deseja iniciar na profissão, Kiko dá a dica:
— Seja aventureiro, com a visão de que você vai para um lugar mesmo sem conhecer, que você pode encontrar qualquer tipo de situação. Por isso, tem de gostar do que faz — ensina.
E assim termina a primeira das quatro séries de aventura com os caminhoneiros pelo Brasil a bordo de um implemento Randon. A próxima vai ao ar na primeira semana de junho. O episódio terá como personagem uma mulher caminhoneira e foi gravado durante viagem por estradas do Estado de Minas Gerais.
Assista
O quê: Primeiro episódio da websérie "Randon na Estrada", com Kiko Bonesi.
Duração: 18 minutos
Onde assistir: https://youtu.be/IQjO7NHT5UE
Pacote de incentivos aos caminhoneiros
O governo federal lançou um pacote de incentivo aos caminhoneiros na semana passada. O Palácio do Planalto criou o Documento de Transporte Eletrônico, que digitaliza e unifica dezenas de outros exigidos dos transportadores de carga. Um segundo ponto é um modelo de antecipação dos valores a receber pelo serviço de frete (antecipação de recebíveis), no qual o caminhoneiro autônomo poderá escolher a menor taxa de desconto a ser contratada por meio de agentes financeiros, como o sistema bancário. Para o professor Felipe da Silva Medeiros, do Campus Caxias do Sul do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), essas duas medidas são positivas: a primeira porque desburocratiza o trabalho e a segunda, porque facilita o acesso ao crédito, embora, na avaliação dele, não estimule de forma intensa o investimento.
Já o terceiro ponto é negativo para a infraestrutura do país e até para os próprios transportadores no médio e longo prazo, diz Medeiros. O governo alterou os limites de tolerância de peso por eixo no transporte de carga. A partir de agora, a tolerância do peso bruto total (PBT) passa de 10% para 12,5% na pesagem por eixo em cargas acima de 50 toneladas. A MP também extingue a tolerância de peso por eixo para os veículos com peso bruto total inferior a 50 toneladas. Neste caso, vale apenas a tolerância, em relação à carga total, de até 5%.
— O projeto dos veículos e infraestrutura rodoviária, por padrão no mundo inteiro, é baseado em um limite de peso por eixo. Essa flexibilização da tolerância do peso em cada um dos eixos traz consequências no médio e longo prazo, como danos no pavimento — detalha o coordenador do curso de Engenharia de Produção do IFRS, ao explicar que os próprios veículos terão uma vida útil menor se extrapolarem o peso por eixo.
Além disso, segundo ele, em seis de cada 10 acidentes de trânsito com caminhões havia sobrecarga nos veículos. Medeiros destaca ainda que cerca de 60% do transporte de cargas no Brasil é feito pelo modal rodoviário, mas que o considera ainda pouco profissionalizado. Para o professor, é preciso desburocratizar e reduzir a intervenção do Estado sobre o setor, além de buscar investimento em inovação e gestão. O engenheiro pontua que existe um excedente de 300 mil a 700 mil caminhões no Brasil — número que varia conforme a necessidade de transporte demandada pelo ritmo da atividade econômica.
— Isso faz o frete ficar muito barato e faz com que aquele transportador autônomo, que não encara o transporte como um negócio, e sim como uma profissão apenas, fique pouco remunerado.
As condições e perspectivas das empresas de transporte de cargas
- 50,5% das empresas acreditam não ser possível prever quando terminarão os prejuízos da pandemia para o setor de transporte.
- 41,6% avaliam a situação atual das empresas como satisfatória.
- Os transportadores acreditam que essa situação não vai mudar nos próximos seis meses (46,8%) ou poderá melhorar (24,9%).
- 46,1% apontaram que tiveram um aumento do endividamento em março de 2021, comparado com o mesmo período de anos anteriores.
- 42% apontaram queda na capacidade de pagamento.
- 4,2% apontaram redução de demanda. 17,4% apontaram aumento na demanda.
- 55,7% tiveram redução no faturamento. 16,7% tiveram aumento no faturamento.
- 35,8% solicitaram crédito em 2021 por conta da pandemia; e, dessas empresas, 27,6% tiveram o acesso negado pelas instituições financeiras.
- 42,3% das empresas acreditam que vão fechar o ano de 2021 com prejuízo.
- 28,7% já adotaram demissões em 2021, por conta dos impactos da pandemia
Fonte: 6ª rodada da pesquisa de Impacto no Transporte - Covid-19
Empregos no setor de transporte de cargas no país
- Admissões em 2021 - 145.634
- Demissões em 2021 - 111.866
- Saldo: 33.768
Fonte: Painel do Emprego no Transporte da CNT