Quando se viu trancado em casa no ano passado, o dentista Ivanir Paulo Kunzler, 58 anos, começou a imaginar como seria viver a pandemia sobre quatro rodas. Passou a ocupar o tempo assistindo a vídeos de casais que colocaram o pé na estrada e o desejo — já antigo — de ter um motor home foi ganhando força. Em agosto, comprou uma van com a intenção de transformá-la em uma casa itinerante.
Hoje, ele está prestes a realizar o sonho. O veículo é um dos tantos que os irmãos Jonata e Rodrigo Pazini, receberam nos últimos meses para adaptar. Os dois trabalham no projeto de Kunzler desde outubro. O veículo terá quarto, sala, cozinha e banheiro adaptados ao espaço, mas capaz de suprir perfeitamente as necessidades de quem adota o estilo on the road. Dentro de um mês e meio, o motor casa deve estar pronto.
— Estou muito ansioso. Quero conhecer lugares, rever outros — diz o dentista, que terá a companhia da esposa Isabel Longhi Kunzler, 58, nas viagens.
A busca de Kunzler e de tantos outros viajantes surpreendeu e representou um certo alívio para os irmãos Pazini, que há oito anos estão à frente da Motor Home Verônica, empresa localizada em Forqueta. Especializados em transformação de veículos para rodeios, temiam que a pandemia impactasse o negócio de forma negativa.
— No início, a gente estava até com medo, mas da metade do ano para cá, começou a aumentar. Está sendo um dos melhores anos — conta Jonata.
De julho até agora, a empresa entregou 20 motor homes e outros quatro veículos estão na fila: três micros e uma van. O empresário acrescenta que o único porém foi o reajuste de preços e a falta de alguns materiais, como as chapas de MDF. Nem sempre foi possível repassar os aumentos para os clientes, porque, em alguns casos, eles aconteceram quando o serviço já havia sido contratado.
"Pandemia foi determinante"
Apreciador de viagens e adepto do campismo, Kunzler, que é escotista, tinha planos de comprar um motor home um dia. Mas sempre postergava. Chegou a ficar em dúvida por conta do alto investimento – cerca de R$ 200 mil. Quando o namorado da filha disse que seus olhos brilhavam quando falava do assunto, decidiu que não havia mais motivos para adiar.
— A pandemia foi determinante. Parece que essa sede de liberdade se refletiu em um motor home viajando. Sempre gostei de acampar, de viajar. Sempre gostei desse estilo mais livre, de contato com a natureza. Outro fator é que saiu a minha aposentadoria — conta.
Kunzler já tem alguns roteiros prontos. Um deles é conhecer as Américas do Sul e Central a partir da Patagônia. Mas enquanto houver incertezas em relação à pandemia, a ideia é fazer viagens mais curtas, dentro do Brasil. Uma delas é pelo Estado de Minas Gerais — onde pretende curtir o pôr do sol no deck que será feito em cima do motor home.
Trabalho garantido até janeiro de 2022
Há 12 anos no setor de motor homes – os últimos quatro como empresário —, Rosenildo Corso viu um aumento de 50% na procura desde o início da pandemia. Com uma equipe pequena, a Motor Home Motor Truck, no Jardim Esmeralda, transformou quatro veículos no ano passado e tem mais oito agendados até janeiro.
— É uma febre, e não sei se vai passar — torce Corso, que tem planos de expandir a empresa com a oferta de aluguel de motor homes.
Entre os clientes de Corso está Mario Studt, 67, morador de Itapema. Mesmo a mais de 500 quilômetros de distância, optou pelo serviço na Serra porque o filho mora em Caxias e é amigo de Corso. O motor home foi entregue em dezembro e já fez a primeira viagem. Levou a família para passar Natal e Réveillon em Alegrete.
Assim como outros apaixonados por campismo e pela estrada, Studt resolveu investir em uma motor casa depois do início da pandemia no país.
— O que fortaleceu o desejo de ter um motor home foi a covid. Me parece mais seguro porque tem tudo dentro. Você não precisa descer para ir a restaurante, a banheiro... — justifica.
Depois de já ter colocado a "casa" na estrada, Studt planeja construir outro motor home, menor. É que ele percebeu que o atual, um caminhão com chassis Iveco, é muito grande para ele e a esposa. Será feito também na empresa de Corso.
— A cultura do motor home é a cultura do desapego — diz.
Investimento sem limites
Os sócios Leandro Perazzolo e Antonio do Nascimento de Moraes, da AL Motor Home, também viram aumentar a procura a partir da metade do ano passado. A demanda foi tão grande que a agenda já está cheia até a metade do ano que vem, ou seja, a empresa tem trabalho para um ano e meio. No entanto, Perazzolo não sabe precisar se a chegada do coronavírus é um dos motivos, já que, segundo ele, a busca tem crescido nos últimos anos.
— É difícil dizer se a pandemia impactou. A gente tem medo que essa procura por viajar pare — diz.
Enquanto existe o interesse pela vida sobre quatro rodas, Perazzolo aproveita. Já foram vários veículos transformados nos últimos meses — e de todas os preços. Chegou a fazer um de R$ 1,5 milhão no ano passado. "Meu padrão é o sonho do cliente", costuma dizer. O valor varia conforme os materiais escolhidos para a obra.
— Mas com R$ 100 mil é possível montar um bom motor home, de qualidade. Só a montagem, fora o veículo — garante Perazzolo.
Além da demanda por construção de motor home, ele conta que tem notado interesse em locação de veículos neste formato. Tanto que o plano futuro de oferecer aluguel de motor home será antecipado. A empresa, localizada no bairro São Caetano, já está produzindo dois para locar em breve.
Além de transformar veículos em motor homes, a AL faz reformas de trailers.
Na estrada há mais tempo
Adepto do estilo de vida sobre rodas, o industriário Ferdinando Geremia, 54, pode experimentar a sensação de estar isolado em casa, mas na rua. Ao longo dos últimos meses, fez algumas viagens de motor home com a esposa e o filho. Foram pelo menos três: até Recife, em Pernambuco; até Caldas Novas, em Goiás; e até Bonito, no Mato Grosso do Sul.
— Te proporciona mais conforto e segurança, porque você não depende de hotel, de camping — diz.
O veículo foi construído pela Ancar Indústria de Ônibus MotorCasa, empresa caxiense que já não opera mais, e há seis anos tem sido o meio de transporte e lar da família nas férias. Não fosse a pandemia, o motor home teria levado os três para Ushuaia no final do ano.
A cidade argentina conhecida como "fim do mundo", por ser a mais ao sul do planeta, ainda está nos planos, quando for possível. O próximo destino ainda não está definido. Com o agravamento da pandemia, Geremia prefere esperar:
— Vamos ver como ficam as bandeiras. Vamos deixar a estrada para quem precisa trabalhar.
Dicas
Geremia ainda não se considera um viajante experiente, mas já tem vivência que o permite compartilhar algumas dicas com quem pretende aderir a esse estilo de vida. Confira:
:: A manutenção do motor home inclui revisões básicas. É preciso cuidar da parte elétrica e da parte hidráulica como em uma casa, porém com cuidados redobrados, já que você estará rodando.
— Se você ficar empenhado, vai frustrar as suas férias.
:: Descarte de resíduos e água podem ser feitos em campings com estrutura para isso ou em postos do tipo paradouro, que recebem ônibus interurbanos.
:: Não viaje à noite ou faça muitos quilômetros por dia.
— A viagem faz parte das férias. O percurso faz parte da diversão.
:: Passe a noite em locais seguros, como postos 24 horas.
SETOR
Conforme a Receita Federal, há em Caxias 13 empresas ativas cuja Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) se enquadra na atividade, ou seja, de fabricantes de motor homes, trailers, reboques e produtos semelhantes.
Frota cresceu no RS e em Caxias
De janeiro de 2020 a janeiro de 2021, a frota de motor homes no Estado aumentou em 912 unidades, conforme dados do Detran-RS. Eram 5.051 e passou para 5.963. Em Caxias, foram 39 a mais: cresceu de 269 para 308. Já a frota de trailers no Rio Grande do Sul pulou de 4.701 para 5.135. Em Caxias, os trailers passaram de 129 para 146.
Os dados mostram que o aumento na frota foi gradativo. No caso dos motor homes em Caxias, eram 278 no mês de março, início da pandemia. Em julho, por exemplo, já eram 290. E em novembro, 303.
Embora não seja possível afirmar que o aumento representa mais pessoas viajando de motor home, estima-se que mais pessoas estão aderindo ao estilo, o que reforça números da Associação Brasileira de Campistas (Anacamp). Conforme Nilva Rios, presidente da entidade, o Rio Grande do Sul é Estado com o maior número de associados: dos 500 em todo o país, 150 são gaúchos.
— O Rio Grande do Sul é o berço do caravanismo — constata a dirigente da entidade.
A Anacamp não tem números sobre viajantes de motor home e trailers, mas diz que é visível o aumento nos últimos meses. Nilva afirma que tem recebido relatos de empresas com muitos pedidos para fabricação e transformação.
— Muitos enxergaram nesse estilo de viagem mais segurança. Permite, de certa forma, manter o isolamento. Já tinha um certo crescimento nos últimos quatro anos, mas a pandemia acentuou — acrescenta.
Para Nilva, essa forma de viajar, muito usual nos Estados Unidos e em países da Europa, ainda está em uma fase inicial no Brasil, mas tem espaço para crescer.
— Você vai para qualquer lugar e, se gosta, pode ficar mais tempo. Te oferece conforto. Se você organiza bem dentro do motor home, nem mala precisa levar. Você está em casa. E tem o contato com a natureza — finaliza Nilva.
Frota
Dezembro de 2019
Motor home: 4.995 no RS e 263 em Caxias
Trailer: 4.649 no RS e 128 em Caxias
Dezembro de 2020
Motor home: 5.880 no RS e 308 em Caxias
Trailer: 5.106 no RS e 146 em Caxias
Janeiro de 2021
Motor home: 5.963 no RS e 308 em Caxias
Trailer: 5.135 no RS e 146 em Caxias
Quem pode dirigir
:: Assim como todo veículo, motorcasas e trailers são registrados no DetranRS por meio dos Centros de Registro de Veículos Automotores (CRVAs). Modificação ou transformação dos veículos, assim com circulação e fiscalização, devem estar de acordo com a Resolução 743-2018 do Contran.
:: Podem ser conduzidos por quem tem CNH categoria B, desde que o trailer ou motorcasa tenha menos de seis toneladas de peso bruto total – se tiver mais, precisa CNH C ou até no caso de trailer articulado a outra unidade automotora e cuja lotação não exceda oito lugares, excluído o motorista. Para esses casos, precisa CNH categoria D.