A quantidade de placas fixadas em espaços comerciais no centro de Caxias do Sul com a sinalização de disponível para alugar tem chamado a atenção do pedestre ou motorista mais atento que passa pelas ruas centrais. A pandemia não apenas mudou a rotina da população, mas é considerada determinante para o fechamento de muitos negócios.
A reportagem conferiu três principais ruas da cidade e constatou pelo menos 70 pontos comerciais à espera de um novo inquilino. O número é obtido em uma rápida contagem pelas ruas Sinimbu, Pinheiro Machado e Avenida Júlio de Castilhos, de uma ponta a outra. Além das placas de imobiliárias, há prédios e salas vazias, sem informação clara sobre a disponibilidade para venda ou aluguel. Apesar do setor imobiliário ainda não ter informação precisa do quanto a mudança impactou o comércio central nos últimos meses, a Associação das Imobiliárias de Caxias do Sul (Assimob) estima queda de 50% na procura por salas na região nos meses afetados pelo distanciamento social.
Surpreendendo o mais antigo consumidor do Centro, as Lojas Bulla são exemplo do impacto sofrido. A tradicional família que chegou a ter quatro lojas em Caxias fecha a unidade da Avenida Júlio, última ainda em funcionamento na cidade. A previsão é de que uma das lojas mais queridas pelos caxienses encerre os trabalhos de 50 anos na cidade até no máximo o dia 20 de outubro, mês em que seria comemorado mais um aniversário de fundação.
— Veio a pandemia, a dificuldade de negociação do aluguel e a saúde dos três (fundadores) e, por isso, reavaliamos tudo. Colocamos no papel e achamos melhor realmente fechar com toda dignidade que a Bulla sempre teve _ conta Séfora Bulla Paviani, 57, uma das proprietárias mais conhecidas junto à história da loja.
Os fundadores aos quais ela se refere são os filhos do avô dela, Pedro Bulla. O pai de Séfora, Severino, e os irmãos, Januário e Irma, foram os responsáveis pelo empenho dos negócios em Caxias. O trio, entre 80 e 85 anos, atuou até recentemente quando, aos poucos, a administração passou a ser dividida também com o filho de Januário, Giovani, 35, e Vanessa, 31, filha de Irma.
Os Bulla começaram há 62 anos com a primeira iniciativa que foi uma loja montada em Flores da Cunha. Esta ainda seguirá de portas abertas. Pedro Bulla começou tudo depois de uma viagem feita em um caminhão até os movimentados comércios de São Paulo.
— Dizia minha tia que ele chegou cheio de bugigangas (risos) — lembra Séfora, que atua na loja da família desde os 14 anos de idade.
O avô havia viajado ao estado paulista para comprar produtos como linhas e roupas já confeccionadas — uma novidade para a época _ para revender em Flores. Em meados de 1970, foi aberta a primeira loja em Caxias, na Rua Pinheiro Machado. Depois disso, avançou para a Visconde de Pelotas e, enfim, a Júlio de Castilhos, onde há o último ponto em funcionamento. O endereço proporcionou até a formação de uma galeria no interior da loja, espaço que foi encerrado no mês de abril deste ano. Eram dois aluguéis, tanto na Julio quanto na Visconde, para que os clientes se sentissem em um ambiente ampliado.
Séfora, habituada a estar em meio às roupas e produtos comercializados na loja, agora passa os dias de uma forma diferente. Ela observa os estoques terminando em vendas de liquidação com ofertas de até 70% de desconto antes de apagar as luzes do local onde passou os últimos 35 anos.
— O sentimento é de tristeza por se desfazer, porque meu avô começou e só fizemos isso na vida. Mas quando repensamos outras coisas, é puxado, é desgastante, trabalhei de segunda a sábado, criei meus três filhos na corrida. Os clientes têm sido um alento. Eles dizem: "como é que vocês vão fechar a minha loja?" Eles têm um carinho muito grande, e nós também. Tem cliente que chora, que agradece, tem o que traz lembrancinha para as vendedoras. Teve uma que veio na semana passada bater foto de toda a loja para guardar de recordação — conta.
Outros vazios
Sapataria Caxiense
O Centro ficará sem as Lojas Bulla no coração da Julio, assim como na mesma quadra já não há a Sapataria Caxiense. No mês de julho, os proprietários Rui e Rossano Boff, falaram sobre o fechamento à reportagem do + Serra e, assim, como os Bulla, também citaram o valor do aluguel como um complicador. A loja estava no ponto há 52 anos. A matriz, na Rua Sinimbu, permanece aberta, já que na unidade o espaço é próprio.
Marianinha
Próximo aos dois estabelecimentos, o Restaurante Marianinha, na Rua Garibaldi, entre a Júlio e a Sinimbu, também se despediu. Como registrado pelo Pioneiro também em julho, na coluna Caixa-Forte e no + Serra, o local encerrou no dia 13 de junho as cerca de 270 refeições diárias que servia em 54 anos de história. Como a família já vinha repensando o negócio, a crise sanitária acelerou o processo.
Vivacce
Há 21 anos na praça de alimentação do Shopping Prataviera, o restaurante fechou as portas em 30 de junho. Segundo disseram ao + Serra em julho dos proprietários, Luiz Adão Merlin e a esposa Gemanir Merlin, a Mani, o fechamento foi foi forçado pela baixa do movimento, estimada entre 80% e 90-% durante a pandemia. Merlin sequer cogitava a possibilidade de encerrar as atividades quando sobreveio a pandemia.
Sai uma loja física, entra o e-commerce
Exemplo de mudanças no formato das vendas é a loja Conexão Urbana, aberta há 28 anos. Segundo relata Caroline Dalcin, filha da fundadora, a mãe, Carmen Klein Dalcin, os planos para formação do e-commerce foram antecipados por conta do cenário atual. Para equilibrar o acesso do público, a unidade da loja física que estava instalada em São Pelegrino (esquina da Avenida Júlio de Castilhos com Rua Feijó Júnior) fechou no final de maio deste ano, mas deu a largada para o mercado virtual. A plataforma para venda online será lançada entre o final deste mês e início de novembro.
— Já tínhamos esse plano antes, na verdade coincidiu (com a pandemia). Entendemos que não havia necessidade de três pontos físicos para Caxias. Os mesmos clientes circulavam nas lojas. O e-commerce nos pareceu uma necessidade. Estamos em fase de cadastramento de seis mil produtos. Não fosse a pandemia, seria para o ano que vem. O consumidor quer mudança, quer coisas novas — considera Caroline.
Apesar da iniciativa, a loja percebeu a mudança de comportamento do consumidor. A Conexão Urbana tem forte presença na linha de roupas para festas. Com a falta de eventos, a maioria dos vestidos finos permaneceu nas araras. As outras duas lojas, localizadas na Júlio e na Rua Tronca, seguem abertas.
Outros fatores além da pandemia
O fechamento de estabelecimentos tradicionais não acontece apenas por causa da pandemia, segundo os relatos. Os depoimentos compilados pela reportagem dão conta de que até a mudança de trânsito na área central foi um agravante. Vagas de estacionamento foram proibidas em ruas como a Sinimbu para facilitar a circulação do transporte coletivo. Além disso, a presença de ambulantes estimula que o público não visite as lojas.
De acordo com o conselheiro da Assimob, Fernando Gonçalves, as mudanças de mercado já são percebidas nos últimos anos de forma gradual.
— O comércio eletrônico está crescendo muito, e isso não significa que o comércio de rua e os shoppings centers irão acabar, mas precisam se reinventar. Não é mais possível ser apenas um ponto de compra, mas tem que ser um ponto onde as pessoas vivem uma experiência agradável — opina.
Conforme Gonçalves, a pandemia afetou as lojas que não haviam se preparando para as mudanças.
— Desde 2015 estamos em uma crise que afetou o mercado também de locação, mas isso tem a ver com as transformações que o mercado está passando. A maioria não estava preparada para migrar para o comércio eletrônico, por exemplo. Outro fator são alguns prédios que já estão depreciados, sem investimento de repaginação — diz Gonçalves, sobre a falta de inquilinos comerciais.