Em uma pequena, ordeira e devota cidade da Serra são criadas e produzidas as peças que apimentam a sensualidade das mulheres e incendeiam a imaginação dos homens. Todos os anos, saem de Guaporé para butiques do Brasil e do mundo milhões de calcinhas com rendas e laços, de sutiãs bojudos, de cintas-ligas provocantes e bodies carregados de transparências. São 150 fábricas de moda íntima na cidade, desde pequenas confecções familiares que envolvem duas ou três pessoas costurando na garagem até marcas com centenas de trabalhadores, antenadas nas últimas tendências e com mercado no Exterior.
Em Guaporé, respira-se lingerie. Quem chega à cidade já encontra, junto ao pórtico de entrada, uma sucessão de out- doors em que modelos exibem as coleções saídas da fértil e ousada imaginação das estilistas guaporenses. A área central é tomada por 136 lojas especializadas, para atender representantes comerciais, atacadistas e sacoleiros. Por toda a parte, o que se vê são calcinhas e sutiãs. Atualmente, o setor emprega 2 mil pessoas, o que significa quase um em cada 10 guaporenses, e corresponde a 15% do ICMS local.
Uma das pioneiras do ramo foi a empresária Loivane Dal Sant, coproprietária da marca Indecense. Em 1993, ela fundou com uma sócia a primeira fabricante de moda íntima da cidade, a Elegance. Loivane trabalhava no comércio, ganhava um salário mínimo e sentia-se insatisfeita. Um dia, a colega viu o anúncio de uma empresa à procura de revendedoras de lingerie. As duas compraram algumas peças e começaram a oferecê-las a conhecidas. Depois de algum tempo, estavam ganhando mais dinheiro nas horas vagas do que no emprego formal.
– Pensamos: vamos fabricar lingerie. Mas por onde se começa? Não conhecíamos tecido, não sabíamos sobre maquinário, não existia mão de obra. Partimos do zero, faltava conhecimento até para saber que estávamos no estágio zero – relata Loivane.
As sócias compraram pano e começaram a trabalhar em casa, mas deu tudo errado: calcinhas e sutiãs não tinham caimento, vestiam mal, ficavam imprestáveis. Elas perceberam que precisavam de gente que soubesse pelo menos manejar uma máquina de costura. Recorreram a costureiras habituadas a confeccionar vestidos de prenda e, em outro momento, a ex-funcionárias de uma fábrica de calçados, peritas em coser solas.
O recomeço
Depois de um ano, quando as vendas engrenavam, a sociedade se desfez, e Loivane deixou a Elegance. Com a irmã, Eliane Dal Sant, começou a Indecense. Foi um retorno ao estágio zero. A família não acreditava na iniciativa, achava que elas estavam malucas e acabariam perdendo dinheiro. Um irmão se opunha:
– Mas vocês vão fabricar calcinha?
Hoje, o tal irmão fabrica calcinhas na Indecense, que tem uma sede com mil metros quadrados, na qual trabalham 55 pessoas (eram mais de 100 antes da crise), sem contar os terceirizados e os empregados da marca de biquínis. As irmãs Dal Sant investem em viagens a Paris, a Nova York ou à China para pesquisar tendências, lançam uma coleção com 70 conjuntos diferentes a cada semestre e produzem cerca de 400 mil peças ao ano.
Segundo Loivane, a explosão da indústria da moda íntima está relacionada com o outro grande ramo econômico de Guaporé, o das fábricas de joias, com tradição centenária. Essas fábricas escoavam sua produção por meio de atacadistas, que, por sua vez, trabalhavam com milhares de revendedoras que batiam de porta em porta. Tais atacadistas perceberam que não custava nada agregar um novo produto, as calcinhas e os sutiãs, aos kits das vendedoras, já que o público-alvo era o mesmo. E assim as encomendas começaram a se multiplicar.
Com o sucesso, todo mundo cresceu o olho e quis costurar roupa íntima em Guaporé. Na segunda metade dos anos 1990, costureiras demitiam-se de seus empregos para abrir seu próprio negócio. Até hoje, é uma indústria eminentemente comandada por mulheres.
– O próprio município demorou muitos anos para aceitar e colocar a indústria da lingerie como um setor industrial como qualquer outro, que gera renda e emprego. Havia um pouco de preconceito, porque a maioria das pessoas que estavam à frente das fábricas era de mulheres jovens e por ter essa cultura, não falo machista, mas de os homens estarem à frente. Hoje a cidade nos vê com bons olhos, até com orgulho – conta a empresária Loivane Dal Sant, da Indecense.
Divisão de tarefas entre irmãs
Na Duélle, conhecida como "a marca do beijo", as irmãs Sandra Krieger Bregolin e Sitânia Krieger se dividem entre a administração e a parte criativa. A caçula Sitânia é a estilista e calcula já ter criado mais de 1,2 mil peças. Por ano, são criados mais de 70 modelos. Tudo está catalogado em pilhas de pastas com os desenhos originais.
Ela desenvolve uma coleção de inverno, uma de verão e mais duas ou três intermediárias, para aplacar a avidez do cliente por novidades. No desenho, visa o sexy:
– São peças para um público jovem, com o foco no sensual. Não é tanto para o dia a dia. Para criar, tem de estar sempre pesquisando. Tem de montar tudo na cabeça e depois buscar os fornecedores. Às vezes, são 14 fornecedores para uma única peça, porque lingerie tem muito aviamento: o bojo, o elástico, o fecho, a alça, o viés de arco. E ainda tem a cor – comenta Sitânia.
A responsável pelos desenhos explica que uma estratégia certeira para descobrir as tendências é acompanhar as telenovelas, prestando atenção nas roupas de baixo. Quando Bruna Marquezine ou alguma outra atriz global surge em cena exibindo a lingerie, a brasileira vai logo procurar algo no mesmo estilo.
Alguns anos atrás, a Duélle havia lançado sutiãs e calcinhas repletos de tiras, o que era uma tendência no Exterior, mas as clientes locais não se entusiasmaram. Daí, apareceu na novela. Bombou.
A Duélle tem a particularidade de ser uma das fabricantes mais internacionalizadas de Guaporé.
Do que produz, 20% vai para fora do país: América do Sul, Estados Unidos, Espanha, Itália, entre outros países. As donas da marca aprenderam que as peças têm de ser adaptadas conforme o mercado. As preferências de brasileiras e norte-americanas, por exemplo, são diferentes.
– Trabalhamos com vários modelos totalmente sem bojo, o que é muito usado na Europa, mas vende pouco no Brasil. Na cor, as europeias são conservadoras, querem tons neutros. Nos EUA, sai bastante sutiã sem o aro. O que existe de comum para todas as mulheres é a renda. Renda é paixão mundial – diz Sandra.