Relembrando o processo de dois anos para se recuperar da escrita de Todo Dia a Mesma Noite, livro sobre o incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, e destacando a importância de eternizar histórias de pessoas envolvidas em algumas das maiores tragédias do Brasil, Daniela Arbex conversou com a reportagem do Pioneiro sobre o que pretende abordar na 39ª Feira do Livro de Caxias do Sul. A jornalista é uma das principais atrações do evento e estará presente no Palco da Feira, na Praça Dante Alighieri, neste sábado (7).
Daniela é autora de cinco obras, Arrastados (sobre o rompimento da barragem de Brumadinho), Cova 312 (investigação sobre o destino de um guerrilheiro durante a Ditadura Militar), Holocausto Brasileiro (sobre o genocídio de 60 mil pessoas no maior hospício do país), Os Dois Mundos de Isabel (sobre a centenária que ajudou milhares de pessoas) e Todo Dia A Mesma Noite.
Dois deles foram adaptados para as telas. Holocausto Brasileiro virou um documentário da HBO em 2016 e mais tarde, em 2021, foi adaptado como uma série e lançado pelo Canal Brasil, no Globoplay, intitulado Colônia. Neste ano, o Globoplay e a Netflix lançaram as próprias adaptações de Todo Dia A Mesma Noite. Além disso, o livro Arrastados está confirmado pelo Globoplay como obra que também terá espaço nas telas em formato de série.
Quando a dor do outro deixa de ser ignorada, ela toca a gente e isso, de alguma forma, é um consolo para quem está sofrendo.
DANIELA ARBEX
jornalista e escritora
Em Minas Gerais, a uma distância de cerca de 1,5 mil quilômetros de Caxias do Sul, Daniela conversou com a reportagem por videochamada e destacou a importância de haver responsabilização sobre as tragédias passadas, que poderiam ter sido evitadas, e o olhar de autoridades e do país para evitar possíveis acontecimentos que venham a tirar a vida de mais pessoas. Daniela diz que existem culpados, mas dificilmente são responsabilizados pelas tragédias.
Leia a seguir, a visão de Daniela Arbex sobre o impacto das próprias obras, tanto para a mudança do andamento dos casos, quanto para o olhar do Brasil pelas próprias histórias e vidas perdidas. Na Feira do Livro de Caxias, a autora conversará com o público a respeito do tema A construção da memória coletiva no Brasil a partir dos livros Holocausto Brasileiro, Todo Dia A Mesma Noite e Arrastados.
Qual a importância de falar sobre a construção dessa memória coletiva no Brasil relembrando tragédias, em um momento em que o Rio Grande do Sul se recupera de um desastre natural?
Para construir essa memória coletiva do Brasil a resposta é bem simples: esquecer é negar a história. Quando a gente esquece, repetimos os erros do passado que nos fizeram chegar aqui. O Rio Grande do Sul é um Estado que viveu uma das maiores tragédias humanitárias do país, com o incêndio da boate Kiss. E nesse momento que o estado teve novas perdas com a questão do ciclone, que foi uma tragédia, a princípio natural, é preciso questionar: será que não poderia ter havido uma prevenção, um cuidado para que a enchente não chegasse da forma que chegou, uma ação para tentar amenizar esse estrago? Acho que tudo tem muito a ver com o cuidado com o outro, e com a forma como a gente quer viver em sociedade.
Qual o impacto de abordar esse assunto em uma Feira do Livro?
Para mim, é um compromisso muito grande estar aí, falando sobre essas questões, relembrando os nossos mortos, relembrando e ressignificando a memória dessas pessoas que se foram. O objetivo do meu trabalho não é falar sobre tragédia, mas destacar as omissões que causam tragédias. Vejo esse encontro presencial com o público, essa feira literária, como algo que tem que ser celebrado. Porque é preciso fomentar uma consciência coletiva sobre a importância de exercermos a nossa cidadania e sobre a necessidade de se combater a cultura de impunidade. Não por acaso, as maiores tragédias do país não tiveram responsabilização, estamos falando de Mariana, Brumadinho, boate Kiss, o Ninho do Urubu, entre outras.
E como despertar esse cuidado com o outro e o olhar de empatia sobre essas tragédias, tanto nos cidadãos, quanto em governantes?
Quando a gente mostra além dos números, a gente mostra os rostos, dá nome e sobrenome, aquelas vítimas deixam de ser um número, uma estatística, e passam a ser vistas como pessoas que tiveram os sonhos interrompidos. As pessoas percebem que eram vidas com trajetórias, vidas que sonhavam e isso toca a gente em um lugar muito diferente. Isso cria algo universal, que é a empatia. Então, como o caso da boate Kiss, a gente consegue se colocar no lugar daquelas pessoas e pensar que qualquer um de nós poderia estar no chão daquele ginásio, ou poderia ter perdido alguém e aí as coisas mudam. Quando a dor do outro deixa de ser ignorada, ela toca a gente e isso, de alguma forma, é um consolo para quem está sofrendo.
Como essas histórias tocam você, que está envolvida diretamente com as pessoas impactadas por essas tragédias?
Eu acho que nos meus livros as pessoas conhecem o melhor e o pior do ser humano. Você vê pessoas de uma covardia inimaginável e pessoas de uma grandeza que você nem sabe que existe. Isso é a vida real. A gente convive o tempo todo com o melhor e o pior do ser humano. E eu não quero ficar blindada de me aproximar dessas histórias, acho que para passar para os outros esse sentimento de empatia, eu preciso me deixar tocar pelas histórias. E quero mesmo é mergulhar nesse universo. Agora, é fato, que alguns mergulhos são tão profundos que a volta para a superfície é difícil . Acho que o livro que mais me causou isso foi o da boate Kiss (Todo Dia A Mesma Noite). Tive muita dificuldade para voltar para superfície, porque eu mergulhei tão profundamente, que fiquei dois anos sem me reconhecer. Então foi um trabalho difícil de voltar a olhar para mim e entender qual era o meu papel nisso tudo.
Nessa sua volta ao Rio Grande do Sul, o que pretendes falar para quem for à Feira do Livro?
Confesso que é sempre muito emocionante estar no Rio Grande do Sul, hoje é a minha segunda casa. Sempre sou muito bem recebida por todos, é um Estado que tenho uma ligação afetiva muito grande e quero mostrar como a potência da palavra é decisiva para essas narrativas. Mostrar os bastidores dessas investigações, de que forma isso mudou o olhar do país para determinados temas. Como por exemplo, no caso da saúde mental, que o Holocausto Brasileiro se tornou uma referência, a mudança do olhar do país também para tragédias evitáveis, como o caso da Kiss, e também para a questão da mineração, com o exemplo de Arrastados, então quero mostrar que discutir essas questões são muito relevantes e importantes para nós enquanto sociedade. O que eu posso dizer é que vai ser um encontro muito emocionante, que eu pretendo tocar as pessoas para que elas saiam de lá diferentes, que saiam mais fortalecidas, com mais vontade de fazer alguma coisa. Que saiam com vontade de fazer a diferença nas áreas em que atuam e que queiram fazer alguma mudança significativa.
Programe-se
- O quê: Bate-papo "A construção da memória coletiva no Brasil a partir dos livros Holocausto Brasileiro, Todo Dia A Mesma Noite e Arrastados", com a jornalista e escritora Daniela Arbex, com mediação da escritora e ex-patrona da Feira de 2002, Maya Falks.
- Quando: sábado (7), às 16h.
- Onde: Palco da Feira, na Praça Dante Alighieri.
- Quanto: Entrada franca.