Na noite de terça-feira (13), o frade, escritor e jornalista mineiro Frei Betto, 78 anos, ministrou em Caxias do Sul a palestra "Fomes do Brasil e Esperanças do Futuro". A passagem do religioso pela cidade, no entanto, também ficou marcada pela desistência do Colégio São José em locar seu auditório, na véspera, devido a um abaixo-assinado movido por um grupo de pais de alunos contrários ao evento (Frei Betto é historicamente ligado a movimentos sociais de esquerda). Ao Sete Dias, Frei Betto falou sobre o assunto e também sobre temas do Brasil recente e atual. Confira:
Sete Dias: Como o senhor vê essa situação ocorrida em Caxias, de um abaixo-assinado organizado por pais contrários à realização da sua palestra no auditório do Colégio São José?
Frei Betto: Eu tenho que agradecer aos pais que tiveram essa reação, porque eles fizeram uma enorme publicidade para todo o Brasil. E dizer que eu espero que eles estejam realmente ensinando os filhos, na família e na escola, os valores cristãos: respeitar os negros, respeitar os gays, respeitar as mulheres, não ter ódio a pobre, ter muito carinho com as pessoas que vivem na rua. Que seja uma educação realmente de amor ao próximo e coerente com os princípios cristãos que eles dizem defender.
Só lamento que as Irmãs (da Congregação de São José) tenham cedido à pressão. As Irmãs foram muito acolhedoras comigo quando eu estive preso em Porto Alegre, durante a ditadura militar (em 1969), mas às vezes o capital fala mais alto que os valores evangélicos.
Estamos completando 10 anos do icônico junho de 2013. Que reflexão o senhor faz a respeito do Brasil de lá para cá?
Lamentavelmente, a esquerda não soube ler as manifestações de 2013. Com isso, ali nasceu todo esse processo de organização e mobilização da direita neofascista no Brasil. E não houve uma reação à altura de setores progressistas, como, por exemplo, intensificar a educação política no nosso país. Nosso povo foi, aceleradamente, deseducado politicamente, tendo, inclusive, tendências que não condizem com a índole do povo brasileiro, como essa polarização emotiva de ódio, de agressão, até de assassinatos. Tudo isso é resultado da não-leitura que os setores progressistas deixaram de fazer daquela mobilização.
Um governo federal se apoia em duas pernas: congresso e mobilização popular. Não pode ser um governo Saci-Pererê. No atual governo, o desafio é muito grande por não ter o congresso e nem ter mobilização suficiente de apoio. Mas são apenas seis meses ainda, e espero que nos próximos meses isso seja obtido.
Numa entrevista recente o senhor explica a diferença entre programas sociais compensatórios, como o Bolsa Família, e emancipatórios, como o Fome Zero. Como o atual governo pode e deve equilibrar essas duas pontas?
O Fome Zero era um programa emancipatório em que as famílias, dentro de três, quatro anos, estariam em condição de produzir a própria renda, enquanto o Bolsa Família é um bom programa, mas é compensatório. A família que sai dele, volta para a extrema pobreza. Hoje está provado que as políticas sociais não mudam a cabeça do povo. O que muda é a educação política. E nós sofremos, no Ocidente e no Brasil, uma deseducação política muito intensa, 24 horas por dia, que é essa cultura que respiramos favorável aos "valores capitalistas": competitividade em vez de solidariedade, naturalização da desigualdade social em vez de justiça social e equanimidade na distribuição de renda. É muito importante que haja um trabalho complementar de educação política, porque aí sim nós teremos uma emancipação.
É também um desafio (para o governo atual) fazer com que o papel do MST seja melhor compreendido pela sociedade e tenha sua importância devidamente reconhecida?
O MST tem 450 mil famílias assentadas, 90 mil famílias acampadas… São milhares de pessoas. Com isso, hoje, é um exemplo de produtividade. Poucas pessoas sabem que o MST tem inúmeras cooperativas, que faz uma produção agroecológica, que é o maior produtor de arroz orgânico latino-americano. É um exemplo de como produzir uma agricultura saudável, sem venenos e de uma maneira cooperativa. Creio que não se justifica, num país de dimensões continentais como o Brasil, até hoje a gente não ter conhecido uma reforma agrária. Isso é um escândalo. 90% dos países da América Latina já fizeram várias reformas agrárias, e o Brasil nunca passou por essa experiência. A gente passa de carro ou de avião e vê quilômetros e quilômetros de áreas improdutivas, sendo que um dos cinco maiores produtores de alimento do mundo convive com a fome. O que falta no Brasil não são alimentos, não é riqueza. O que falta é justiça".
Podes indicar três livros para quem quiser começar a ler Frei Betto?
Eu indico um na linha da espiritualidade, que é Um Homem Chamado Jesus (editora Rocco, 2022, 384 páginas), outro na linha da política, que é Batismo de Sangue, sobre o período da Ditadura (Rocco, 2000, 448 páginas), e por último Aldeia do Silêncio (Rocco, 2013, 192 páginas), um romance que fala de algo que vai na contramão do que estamos vivendo hoje nessa sociedade tão ruidosa. Fala de um homem que nunca disse uma palavra, mas que no entanto foi uma pessoa que conseguiu alcançar a felicidade.
A palestra de Frei Bettto em Caxias foi promovida por um conjunto de entidades, como Sindiserv, Sinpro, Sindicato dos Bancários, União das Associações de Bairros, Coletivo de Comunicação Alternativa e Associação Amigos da Maesa.
CONTRAPONTO
Procurada pela reportagem, a direção do Colégio São José se manifestou através da assessora de comunicação, Miriam Spuldaro:
- O Colégio São José é uma instituição cristã-católica apartidária, que sempre mantém uma postura equilibrada e baseada na ética, na fraternidade e nos valores cristãos. Tudo isso está no nosso regimento interno. A palestra não foi divulgada pela instituição, pois tratava-se apenas de uma locação. Os pais tiveram acesso à informação e se organizaram nesse grupo de WhatsApp, de cerca de 300 pais, que fizeram o abaixo-assinado pedindo o cancelamento da palestra, reunindo mais de 2,8 mil assinaturas. Cerca de 50 pais vieram pessoalmente colocar seu posicionamento, de forma muito civilizada. A palestra não foi cancelada, pois nem cabia isso à escola, mas a direção optou por acolher o pedido dos pais e cancelou a locação. Os pais e responsáveis sempre estiveram conosco na caminhada da escola.