Alguns primeiros encontros são inesquecíveis. Especialmente as descobertas da infância, como a primeira vez que uma criança depara com um bicho de estimação ou segura o primeiro instrumento musical. Puxe pelas memórias mais remotas e é provável que lembres também do teu primeiro contato com uma história em quadrinhos. Paixão duradoura, os gibis acompanham seus aficionados pela adolescência e até à vida adulta, muitas vezes com interesse renovado, mas sempre mantendo viva a criança que fez o adulto ser quem é.
A porta de entrada do designer gráfico Mauro Martins, 52, no mundo dos quadrinhos, foi a mesma por onde passou a maioria das crianças brasileiras desde a segunda metade do século passado, pelo menos, com a popularização da Turma da Mônica e dos personagens da Disney (o Brasil, diga-se publica revistas em quadrinhos desde o século 19, e O Tico -Tico, de 1905, é considerada a primeira revista nacional do gênero). Historinhas que servem de alfabetização para o mundo das narrativas visuais, muitas vezes levando ao passo seguinte que é o mergulho no universo dos super-heróis, onde as narrativas são mais elaboradas, assim como os traços, e as cores são mais impactantes. É nesta fase que se descobre a Marvel, do Homem-Aranha e do X-Men, ou a DC Comics, do Batman e do Super-Homem, às vezes tendo até de escolher um lado (para os não iniciados, é como um Gre-Nal entre os dois estúdios criadores dos heróis mais populares do universo nerd).
– Tem muita gente que gosta dessas discussões, de que tal herói é mais forte que o outro, mas pra mim é só papel. A gente não é dono do personagem. Se o autor quis levar para um lado ou outro, vá ler as histórias mais antigas, que te fisgaram. Como todo bom velho, eu sou saudosista. Gosto do rock antigo e dos super-heróis antigos. Depois de tanto tempo colecionando, a gente não se surpreende mais com as histórias de heróis, mas a importância é a mesma, porque a memória afetiva é muito forte. Tu pegas um gibi na mão e não é só sobre a história que ele contém, mas também como ele se mistura com a minha própria história de vida – conta o carioca, que mora em Caxias do Sul desde 1997.
Dono de uma coleção de milhares de HQs, iniciada em 1979, Mauro não titubeia quando é para eleger Sandman (publicado Vertigo, selo da DC Comics) como o seu quadrinho preferido. Criado em 1988 pelo norte-americano Neil Gaiman, até o número final somou 75 fascículos, em 13 sagas (algo como as temporadas de uma série).
– É um quadrinho que pelo menos uma vez por ano eu pego para ler uma saga completa. Assim como o cinéfilo assiste O Poderoso Chefão, o fã de Sandman sempre vai reler e deparar com alguma coisa que ainda não tinha notado, por ser uma narrativa muito rica.
O apaixonado por histórias em quadrinhos normalmente evolui para o quadro de colecionador. Aquele que na infância encheu seu quarto de gibis e revistas, e já adulto investe boa parte do seu orçamento em box de DVDs, quadrinhos relançados em edições de luxo ou raridades garimpadas na internet, que podem ser compradas em lojas físicas ou virtuais ou nos diversos encontros que alimentam o mercado e a cultura nerd, ou geek ( termos diferentes para pessoas que têm em comum o hábito de pesquisar a fundo sobre aquilo que gostam).
No quarto do historiador e estudante de Publicidade Gustavo Fabião, 47, se os brinquedos ganhassem vida, como em Toy Story, heróis e vilões viveriam num conflito eterno. São centenas de bonecos de personagens que marcaram as mais diversas épocas, não só no mundo dos quadrinhos – também tem a turma do desenho animado He-Man, os dinossauros do filme Jurassic Park e toda a franquia Star Wars, por exemplo. Uma devoção à cultura pop que, a exemplo de Mauro, começou na infância. As lembranças mais vívidas são dos tempos de escola:
– Naquela época a galera que gostava de quadrinhos não exibia tanto esse gosto. Não éramos os mais populares da escola (risos). Era a turma que ficava na sala de aula no recreio, trocando as revistinhas para ler ali mesmo, porque emprestar era complicado. Muitas vezes não voltava – recorda o morador do bairro Floresta.
Conforme Gustavo saiu da escola e entrou na faculdade, e depois na segunda graduação, os quadrinhos continuaram e ainda continuam chamando sua atenção, inclusive inspirando estudos sobre a exploração de temas como em capas de gibis.
– Os quadrinhos sempre refletiram sobre a realidade, a partir do contexto da época em que foram escritos, tendo como pando de fundo fatos históricos, como o Holocausto (Maus, de Art Spiegelman) ou a Guerra Fria (Capitão América, O Incrível Hulk, o Homem de Ferro e outros heróis da Marvel surgiram explorando o contexto histórico), ou questões sociais como drogas, racismo e sexualidade. Após o 11 de Setembro, por exemplo, muitos desenhistas surtaram e passaram a fazer quadrinhos muito violentos – explica.
Ponto de encontro
Há 31 anos, o sebo O Colecionador é um dos pontos de encontro para os aficionados por quadrinhos, em Caxias do Sul. Foi a primeira loja de livros e revistas usadas da cidade e da região, motivo que desde os primeiros anos trazia a Caxias clientes de diversos municípios vizinhos. E ainda é assim, graças ao zelo da equipe tanto em abastecer as prateleiras de novidades quanto de raridades e coleções completas, que podem chegar a ser vendidas por até R$ 4 mil.
– Às vezes a gente recebe uma coleção e fica até com pena de vender as revistas separadas, porque sabe o quanto a pessoa pode ter levado anos para montá-la. Pode ter sido deixado de herança, ou o próprio colecionador quis passar adiante para dar uma utilidade. O sebo faz essa intermediação. Tem casos, quando são números sequenciais, que nós embalamos e só vendemos completa. Não tanto pelo valor comercial, neste caso, mas por um apego que só quem coleciona entende – comenta o proprietário, Fernando Berti Rodrigues.
Além de atender os frequentadores que buscam pelo último lançamento ou pelo item que falta na coleção, o sebo da Rua Pinheiro Machado também mantém grupos de WhatsApp que nasceram com finalidade comercial, mas que se tornaram fórum para boas discussões:
– É uma interação muito bacana entre gente de todas as idades. O pessoal conhece cada ilustrador, cada editora, comenta as referências que encontraram em cada adaptação para o cinema. Tem clientes que são adultos e compram com a gente desde que eram garotos, outros já passaram essa paixão para os filhos, que muitas vezes preferem os mangás. Existe um misto de tradição e renovação muito forte.
Infância entre heróis do passado e do presente
É verdade que só faz sete anos, mas a primeira memória que João Mateus Comberlato consegue acessar é de vestir a fantasia de Homem-Aranha na sua festa de aniversário de três anos. Hoje, aos 10, o menino é enciclopédico ao falar sobre super-heróis que decoram cada uma das paredes do seu quarto, no bairro Colina Sorriso, em Caxias do Sul.
Antes das revistas e das graphic novels (versões mais rebuscadas, normalmente em capa dura), João Mateus foi fisgado pelos filmes. Lembra de cada ida ao cinema e qual familiar o acompanhou para assistir adaptações para as telonas de Guerra Infinita, O Homem-Formiga e a Vespa, A Capitã Marvel e a Viúva Negra, Eternos, entre tantos outros. Ao contrário da maioria dos fanáticos por super-heróis, o gosto pelos quadrinhos veio depois.
– Foi num dia em que fui à padaria com a minha avó e lá tinha um gibi dos clássicos da Marvel, do Homem-Aranha. Ela comprou pra mim e eu fiquei fissurado. Logo depois comecei a colecionar – conta o menino, que tem até um suporte para poder ler os livros mais pesados sem prejudicar a coluna.
Apesar da pouca idade, João Mateus não se preocupa com histórias que possam conter cenas mais violentas, com algumas do Batman:
– Eu sei que é tudo inventado, é só ficção.
A irmã, Júlia, 9, embora tenha preferência por literatura infantojuvenil, como Harry Potter e a série Anne, de Green Gables, já foi influenciada pelo gosto do irmão mais velho.
– Ele disse que eu ia gostar do Naruto (mangá japonês), e eu achei muito legal. Também gosto do Homem-Aranha e da Capitã Marvel – conta a menina.
O pai, Mateus Comberlato, 38, brinca com a diferença entre a infância que ele teve com a do filho:
– Não foi por mim que puxou. Eu só gostava de jogar bola – diverte-se.
Bom no desenho, João Mateus já pensa em seguir uma profissão que o permita mergulhar ainda mais no universo dos quadrinhos. Quer estudar Animação e, quem sabe, trabalhar num grande estúdio de cinema para ajudar a dar vida aos heróis que, por enquanto, idolatra em seu quarto de criança.
Gibis feitos em sala de aula
O fascínio pelas histórias em quadrinhos chegou às salas de aula de três escolas municipais de Caxias do Sul. Iniciado no ano passado, um projeto idealizado pelo jornalista Régis Vargas convida os estudantes a conhecer e contar a história das personalidades que dão nome às instituições de ensino, utilizando a linguagem e os recursos das HQs. Para isso, recebem oficinas de história, com a historiadora Ana Paula Almeida, de desenho, com o ilustrador Ernani Carraro, e de criação textual, com o próprio Régis.
– Aprendi a gostar de gibis com o meu irmão mais velho, nos anos 1970. Ele comprava as revistinhas a e gente devorava. Sempre fui mais pelo lado da diversão do que da aventura. Até hoje me divirto com as histórias do Urtigão, do Superpateta e do Peninha (repórter do jornal A Patada, de propriedade do Tio Patinhas) – conta o jornalista, que também é fã dos desenhos animados clássicos da Hanna-Barbera (estúdio criador do Scooby-Doo, Zé Colmeia, Os Flintstones, etc).
Intitulado Nossa Escola Tem História, o projeto é viabilizado pela Lei de Incentivo à Cultura - LIC Municipal. A primeira escola a concluir e lançar o seu gibi foi a Carlin Fabris, no bairro Desvio Rizzo. O projeto mobilizou os estudantes de 5º ao 9º ano, que viveram um dia de celebridade quando a revistinha veio a público, em maio deste ano.
– Foi muito emocionante e contagiante ver a gurizada autografando os exemplares para a diretora, para os professores, colegas. Espero que tenhamos plantado uma semente para que esses jovens continuem escrevendo, desenhando, pintando, e quem sabe alguns possam fazer disso a sua profissão. O gibi sempre vai ter alguém pra ler e compartilhar com o amigo– comenta Régis.
Atualmente, as oficinas estão sendo realizadas na Escola Américo Ribeiro Mendes, que logo irá iniciar a produção do seu gibi. O projeto ainda deve chegar a uma terceira instituição, que ainda está em negociação.