Quem aprecia uma taça de brandy sabe que a qualidade do tradicional destilado de vinho depende diretamente do tempo em que a bebida permanece descansando no barril de carvalho. Quanto mais velho, maior a complexidade dos aromas, mais vibrante é a cor, mais exuberante é o sabor. Eventualmente, a regra do tempo se aplica também aos homens. Ao completar 80 anos, o empresário Ayrton Giovaninni é quase um brandy: apurou com o tempo, tornou-se uma liderança em Bento Gonçalves e é referência quando o assunto é vinho, metalurgia ou padel. Hoje, na maturidade, bebe a vida em goles suaves, desfrutando ao máximo de cada nota de vivências e sentimentos.
Para celebrar a trajetória deste jovem e vigoroso octogenário, a família preparou uma surpresa para levar ao público uma breve degustação de seu patriarca. Chega nessa semana ao mercado o Brandy Vicket, com 21 anos de envelhecimento em barris de carvalho e teor alcoólico de 40%, uma homenagem da vinícola Don Giovanni, de Pinto Bandeira, ao seu fundador. O nome, Vicket, é o apelido de Ayrton, que na infância era chamado assim como um diminutivo do nome do pai, Ludovico, o Vico.
— Queríamos fazer uma homenagem em vida, para que ele pudesse curtir esse produto tão especial. O brandy é fruto de tempo, paciência, bastidor. Tem tudo a ver com ele. Estamos felizes por ter o Ayrton na base da família e da vinícola. É uma inspiração — comenta o genro e diretor da Don Giovanni, Daniel Panizzi.
O Almanaque conversou com seu Ayrton dias antes do aniversário, quando ele ainda não fazia ideia do presente que ganharia da família. Para ilustrar seu gosto por brandy, revelou que, quando adquiriu a propriedade em que hoje funciona a vinícola, exigiu que ficassem na cantina 100 barris de carvalho que haviam pertencido à Dreher, antiga proprietária do local. A ideia já era envelhecer o destilado de vinho tão querido pelos descendentes de imigrantes italianos da região.
— Sou apreciador de brandy. Gosto de degustar depois da refeição ou assistindo a um filme. A combinação perfeita é um cálice de brandy com um charuto — revela.
No último domingo, dia 16, quando celebrou os 80 anos ao lado da esposa, dos filhos e dos netos, sorveu incrédulo o primeiro cálice da bebida que pretende carregar um pouco de sua personalidade.
— Venho acompanhando o desenvolvimento deste produto ao longo dos anos, já sabia que seria bom. Não perde em nada para os cognac franceses, atingimos nossa meta de qualidade. Só não fazia ideia de que viria na forma desta homenagem. Para um patriarca octogenário é um orgulho — afirmou Vicket, depois de mais um gole de seu brandy.
As voltas de um espírito inquieto
No tempo em que Bento Gonçalves era uma pequena cidade na qual quase todo mundo se conhecia, o jovem Ayrton Giovaninni sonhava cursar o segundo grau e a faculdade de Agronomia em Porto Alegre. Apenas alguns anos antes os primeiros jovens saíam da Serra para estudar na Capital. Era o auge dos anos 1950 e os bailes nos Clubes Aliança e Ipiranga o aproximaram da guria de grandes olhos verdes a quem ele paquerava ao passar pela frente da casa dela. Entre danças, fisgou o coração de Beatriz Dreher Giovaninni, 76, com quem está prestes a completar 55 anos de casamento.
— Ele passava na frente da minha casa e dizia que ia casar comigo. Eu namorei outras pessoas, ele também. Mas acabamos cumprindo a promessa — relembra Dona Bita.
A formação em Agronomia, aliada ao interesse pelo vinho, fez Ayrton buscar uma vaga na Secretaria de Agricultura, cuja sede regional ficava em Bento. Não demorou muito para ser aprovado em um concurso para a divisão de pesquisa do Ministério da Agricultura, que viria a ser a Embrapa. Era o começo da pesquisa em viticultura, os primeiros esforços para qualificar o vinho brasileiro. Nesse período começou o trabalho na Estação de Enologia, que cultivava cerca de 400 variedades de uva, para testar quais se adaptariam melhor ao terroir da Serra. Participou das primeiras expedições para a implantação da cultura de uvas viníferas no Vale do São Francisco e estava de partida para a Espanha, para seguir com as pesquisas pela Embrapa, quando um acidente aéreo mudou sua história. Duas vítimas eram diretores da Vinícola Dreher, que nessa época era uma potência fabricante do famoso conhaque, além de uma série de outros produtos, e que ainda pertencia à família de sua esposa, Beatriz. A carreira no serviço público foi interrompida para assumir a diretoria da indústria de conservas da Dreher.
A venda da companhia para um grupo americano foi o adeus temporário da família à propriedade que hoje abriga a Don Giovanni. O local era uma estação experimental da Dreher, onde se testavam técnicas de cultivo e variedades de uva. Anos depois, o casal se reencontrou com a velha casa. Na encosta do morro, antigas vinhas ainda produziam. Adquirida para ser a casa de campo da família, foi naturalmente se tornando uma vinícola meio improvisada, onde Vicket podia exercitar sua paixão pela viticultura.
— Rotulávamos o vinho na garagem. Não planejamos nada, mas era nossa vocação — relembra.
Muitos desafios na trajetória de Ayrton
Antes de voltar a ser vinhateiro, porém, outro desafio atravessou sua trajetória. Com a venda da Dreher e com outras perdas na família, um dos negócios precisava de um diretor. Ayrton assumiu a Metalúrgica Farina, que à época processava 25 toneladas de ferro fundido por mês. Hoje, a indústria processa duas mil toneladas mensalmente, fornecendo autopeças fundidas e usinadas para o setor automotivo pesado. À frente da empresa, tornou-se uma liderança empresarial na região e no Estado, tendo feito parte do sindicato patronal da categoria e da diretoria da Fiergs, de quem recebeu o título de empresário do ano.
Hoje, Ayrton desfruta das sementes que plantou ao longo da vida. Tanto na metalúrgica quanto na vinícola, atua como conselheiro dos filhos e genros. Ao lado da esposa, tem passado o tempo durante a pandemia curtindo o que mais gosta: leitura, cinema e vinho. E algum jogo de cartas com casais amigos, de vez em quando. Imunizado com as duas doses da vacina contra a covid-19, voltou a jogar padel com regularidade, uma de suas grandes paixões.
A primeira cancha de Bento foi instalada justamente na casa dos Giovaninni, onde os amigos se encontravam para praticar.
— O Ayrton é um cara muito especial. Há alguns anos diagnostiquei uma lesão no braço direito, que o impediria de jogar. A tenacidade dele é tanta que aprendeu a jogar com a mão esquerda. Segue sendo um jogador competitivo — relembra o médico Jorge Tramontini, amigo de décadas e companheiro de padel.
Aos 80 anos, Vicket ainda tem disposição para olhar em direção ao futuro.
— Não tenho mais fôlego para trabalhar o dia todo. Nem quero. Mas não vou vestir o pijama e ficar em casa. Sei que os próximos projetos serão os melhores, a próxima viagem será a mais emocionante. Quem não tem projetos, está acabado — garante.
No momento, o jovem Ayrton acompanha com entusiasmo a reconversão dos vinhedos, a elaboração de vinhos e a viticultura biodinâmica adotada no complexo enogastronômico. Quer ver crescer os netos. Quer seguir aconselhando os filhos nos negócios e na vida. Quer, enfim, seguir sendo como um brandy, maturando lentamente, tornando-se cada vez melhor.
Homenagens na taça
Transformar histórias em bebidas tem se tornado uma especialidade da Don Giovanni. Em 2015, quando a matriarca da família, Beatriz Dreher Giovaninni, completou 70 anos, a vinícola lançou uma homenagem para ser desfrutada pela própria inspiradora do projeto. O espumante Dona Bita Champenoise, feito com o clássico corte de chardonnay e pinot noir, maturou por 70 meses em garrafa antes de ser finalizado. É uma bebida de grande elegância, cremoso em boca e com aromas que vão desde o pão tostado, passando pelas frutas amarelas e flores brancas, até chegar ao mel e ao brioche. O apelido de infância de Beatriz estampa o rótulo que faz parte do rol de produtos superpremium da vinícola.
Para celebrar os 80 anos de Ayrton, a escolha foi o brandy, bebida tradicionalíssima cuja receita chegou à Serra justamente com os antepassados de Beatriz e que rendeu notoriedade à Dreher. O brandy mais famoso do mundo é o produzido na cidade francesa de Cognac, que se tornou uma denominação de origem e passou a batizar a bebida produzida por lá. Ao redor do mundo, os brandies são normalmente produzidos com uvas brancas como Trebbiano, Ugni-Blanc, Saint-Émillion e Folle Blanche. Na Serra, é comum o uso de Isabel associada a outras variedades vitis vinífera, como é o caso do Brandy Vicket. Com 40% de teor alcoólico, é uma bebida de grande corpo, com doçura equilibrada e aromas de cacau, tabaco e baunilha. Para degusta-lo, seu Ayrton dá a dica:
— Aqueça na mão, com movimentos suaves, para liberar os aromas e acentuar o sabor. Depois é só beber com calma, aproveitando o momento.
Projetos para testemunhar o futuro
Quando adquiriu a propriedade em que hoje está a Vinícola Don Giovanni, o casal Giovaninni queria apenas uma casa de campo, para curtir os finais de semana com os filhos pequenos. A coisa foi crescendo naturalmente, com a produção pequena e experimental de vinhos e com a lenta transformação do velho casarão em pousada. O patriarca que criou o complexo agora acompanha de perto com entusiasmo uma nova aventura, que deve ser inaugurada no mês que vem, dando um impulso no enoturismo no local.
Sob a batuta do chef Rafael Jacobi, o restaurante Nature Garden está em fase de construção ao lado dos vinhedos e terá capacidade para 150 pessoas nas áreas interna e externa. O menu está sendo elaborado para lembrar os terroirs das principais regiões vinícolas do mundo, em especial a Serra gaúcha e Pinto Bandeira. Os pratos também homenageiam a trajetória da família, com receitas que a própria Dona Bita preparava para os hóspedes, como o risoto elaborado com as alcachofras plantadas na propriedade ou a cassata preparada com figo ramy. Os rótulos da Don Giovanni harmonizam com os pratos e petiscos e deixam a experiência que promete misturar gastronomia, enoturismo e natureza ainda mais original. Em suas caminhadas pelos arredores dos vinhedos, Ayrton e a esposa, Bita, observam atentos o avanço das obras e aguardam ansiosos o momento de ver florescer mais um projeto que aponta para o futuro.
Como chegar na Don Giovanni
O Complexo Gastronômico Don Giovanni fica na VRS-805 (Linha Amadeu), Km 12. Os telefones para contato são (54) 3455-6294 ou 3455-7377.