A escalada de conquistas de direitos de homossexuais no Brasil tem sua maior concentração nos últimos 20 anos. Foi neste período que a população conseguiu despertar o olhar das autoridades políticas para suas reivindicações mais urgentes e antigas, como o direito ao casamento e à adoção por casais do mesmo sexo e do reconhecimento legal do nome social por travestis e transexuais. Também nas últimas duas décadas se popularizou no Brasil a chamada Parada Livre, dia festivo em que o público gay vai às ruas para exibir seu orgulho. Em Caxias do Sul, essa festa celebra sua vigésima edição neste sábado, em formato virtual.
Quando Sandro Maurício da Silva teve a ideia de trazer o evento para Caxias, em 2001, não imaginava que 19 anos depois teria 35 mil pessoas no entorno da Praça Dante Alighieri, no ano que marcou a volta do evento ao coração de Caxias após polêmicas envolvendo o governo do então prefeito de Daniel Guerra. Mas não é que o evento tenha surgido assim tão pequeno. Ajudado por uma feliz coincidência, a primeira edição aberta ao público, em 2002, reuniu 10 mil pessoas.
– Tivemos a feliz coincidência da Parada acontecer no dia em que o Brasil ganhou a Copa do Mundo (de 2002), e as pessoas saíram às ruas para comemorar e se juntaram a nós – recorda Sandro, também conhecido por interpretar a drag queen Valma Classic Kieer, que comanda o microfone nas paradas.
Marcada pela resistência tal qual a luta dos homossexuais, transexuais e travestis, a Parada Livre de Caxias é o dia em que pessoas como o casal Elias Jacson Cabral e Guilherme Cabral reafirmam sua militância pela causa, que começou com a sigla GLS e foi ganhando novas letras até chegar à atual LGBTQI+ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, queer, intersexuais e demais, como assexuados e aliados da comunidade). Neste ano, Jackson e Guilherme estão entre as poucas dezenas de convidados que irão prestigiar a Parada Livre in loco no Centro de Cultura Ordovás, ocasião em que irão comemorar o primeiro ano de matrimônio. No ano passado, os moradores do bairro Mariani foram o primeiro casal gay a usar terno e vestido no Casamento Comunitário, promovido pela prefeitura de Caxias e realizado no ginásio da Vila Poliesportiva da UCS. Para o casal, foi uma maneira de mostrar que o espaço de qualquer pessoa deve ser respeitado em qualquer lugar.
– A militância não é só para que nos aceitem, mas para que parem de nos machucar todos os dias, de nos dar olhares de condenação todos os dias. Aos poucos estamos conquistando nosso respeito e nosso espaço, porque mostramos que a opção sexual não muda o caráter de quem tem bom coração. Quando uma pessoa te desrespeita, ela espera que tu retribua da mesma forma. Mas se tu não devolve esse desrespeito, algo de bom pode acontecer. Tu vai plantar algo de bom na cabeça dela – pontua Jackson.
SER O QUE QUISER, ONDE QUISER
Além de marcar a luta contra a homofobia, fator que motivou a morte de mais de 300 pessoas em 2019 no Brasil (o país mais violento do mundo nesta estatística), a Parada também é espaço para mostrar que a pessoa homossexual pode ser e fazer o que ela quiser. Como muitas fontes desta reportagem afirmam, é mais do que ser cabeleireiro ou manicure, empregos comumente atribuídos aos gays. Uma prova disso se viu na Mercopar, feira de negócios do setor industrial realizada em Caxias do Sul, que se encerrou na última quinta-feira. Liderando a equipe de bombeiros designados para o evento, esteve Nicoli Ulguim. Lésbica, mãe de duas gêmeas geradas por fertilização in vitro no ventre da ex-companheira, Nicoli construiu sua carreira voltada para a instrução de resgate e liderança de equipes.
–Fui salva de um incêndio na casa da minha família quando tinha cinco anos, e cresci sabendo que minha missão seria salvar vidas. Sofri preconceito por ser uma mulher num universo muito masculino, mas conquistei meu espaço demonstrando competência e disciplina – conta Nicoli, que também é proprietária de uma empresa de treinamentos, há oito anos.
A bombeira e empresária conta que é normal os homens das suas equipes estranharem ser liderados por uma mulher de cabelos curtos e corpo musculoso, mas que não abre mão de suas características que podem ser consideradas mais femininas:
– No primeiro momento eles estranham, mas quando veem que eu trato com bastante carinho, sem ‘falar grosso” como eles esperam, dou a volta nesse preconceito. Não perco minha essência feminina e de gostar de ser mulher, e assim gosto de ser tratada, da mesma forma que quero ser tratada pelas minhas filhas com mãe.
Frequentadora da Parada Livre, Nicoli parabeniza a organização pelas duas décadas de trabalho em prol da visibilidade e da valorização da comunidade:
– Já fui para prestigiar e para trabalhar como bombeira, e acho que é um evento que nos mostra que as pessoas não precisam ter vergonha de ser felizes com as suas escolhas, respeitando o próximo e exigindo o mesmo respeito em troca.
Ao considerar a Parada Livre uma “história sem fim, como a que dá nome a uma famosa trilogia de filmes infanto-juvenis, Sandro, ou Valma, considera que o evento ainda tem muito a crescer. Mais do que as leis, analisa, é o empoderamento que faz a população LGBT conquistar seu espaço, levando as causas do movimento a espaços de debate como escolas e universidades. Destaca também que o papel da população gay aplaudir e participar de todas as manifestações populares, para mostrar que Caxias é uma cidade de todos, todas e todxs.
– Temos de estar juntos com o Carnaval, a Festa da Uva, a bênção dos Capuchinhos, a festa de Natal, o festival de hip hop, aplaudindo todas as manifestações, porque a cidade é uma só, mas quem a torna o que ela é somos todos que vivemos nela.
É TEMPO DE SE AMAR
Aos 45 anos, Núbya Gonçalves conta que, com cinco anos, se olhava no espelho e não se reconhecia no corpo de menino em que nasceu. Desde a infância e a adolescência, a luta por conquistar a própria identidade não foi fácil, mas se tornou menos difícil pela arte. No palco, com performances de drag queen e de transformista, venceu inúmeros concursos, viajou por todo o Brasil e se tornou uma mulher trans realizada, e que ainda se realiza conforme vê cada pessoa que passou pelos mesmos períodos turbulentos brilhar naquilo que faz.
– A dificuldade em se aceitar e ser aceita leva muitas pessoas para o caminho errado, e o palco é um lugar capaz de salvar vidas. Não é só a minha história, é a de muitas outras que passaram a ser respeitadas e admiradas pelo trabalho artístico e assim reconheceram seu próprio valor – destaca.
Funcionária de um estúdio de fotografia no centro de Caxias do Sul, Núbya é mais um exemplo de que a opção sexual, assim como a de transformar o corpo – no seu caso, com o uso de hormônios – não impede ninguém de levar a vida que a sociedade entende como comum. Agradece por ter como chefes pessoas que não se importam e até fazem questão de ter gays e trans no quadro de funcionários de suas lojas. E acredita que momentos como a Parada Livre, bem como a maior exposição de assuntos referentes à diversidade na mídia ou na escola, podem contribuir para que as novas gerações tenham menos preconceito:
– A Parada é o momento em que damos as mãos para mostrar que temos o mesmo direito de ser felizes que as pessoas hetero. É lindo ver idosos, ver crianças perto do palco, respeitando e admirando o que fazemos. Muitas crianças recebem em casa uma orientação preconceituosa de pais homofóbicos, mas nós temos a potência de mudar essa ideia errada, mostrando que o amor vence tudo.
Ir além de não ter preconceito
Parafraseando o bordão utilizado pelo movimento antirracismo, também é possível dizer que, para quem quer ser e fazer a diferença, não basta não ser homofóbico. É preciso ser anti-homofobia. E isso vale também para heterossexuais que se envolvem com o movimento LGBT, como a vendedora Carla Pacheco. Membro da comissão organizadora da Parada Livre de Caxias há três anos, Carla foi madrinha da última edição do evento e guarda com carinho a faixa e a bandeira que simboliza o movimento, com as cores do arco-íris.
– Independente da nossa opção sexual, todos nós temos que saber nos colocar no lugar do outro e perguntar: “e se fosse comigo?” Mais do que frequentar a Parada com meu marido e me envolver na organização, a cada no procuro levar mais pessoas hetero, famílias e pessoas religiosas, para mostrar que não se trata de um evento de doutrinação. A única intenção é exibir orgulho e felicidade – defende.
Carla, que acompanhou de perto a polêmica envolvendo a realização das últimas edições, que a gestão anterior tentou barrar em seu local original, a Praça Dante Alighieri, considera igualmente fundamental para o combate a atos discriminatórios a união de esforços de entidades organizadas e do poder público:
– Quando enfrentamos a luta para poder voltar a realizar a Parada na Praça Dante, tivemos uma mobilização muito grande, que contou com o apoio da União das Associações de Bairros, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e de vereadores. Sem verba pública, mostramos que unidos somos muito fortes.
“Amor e carinho em dobro”
Na mais recente edição da Parada Livre, em 2019, uma menina de 11 anos roubou a cena ao subir ao palco e ler um poema escrito por ela sobre o respeito à diversidade. Eduarda Chaida é filha de duas mães: a biológica, Fabiana Chaida, e sua madrasta, Silvana Macedo. Em união estável há 11 anos, Fabiana e Silvana criam a menina juntas desde seus oito meses. Faz parte da infância de Eduarda driblar o preconceito manifestado especialmente em piadinhas que ouve na escola sobre ser filha de duas mães. Nada que jamais a tenha abalado.
– Pra mim ter duas mães é ter amor em dobro, ter carinho e ensinamento em dobro. Não ligo para o preconceito porque tenho muito orgulho delas, de terem passado por muita coisa e manter a cabeça erguida. São duas mulheres numa sociedade de muitas pessoas maldosas, que acham que a pessoa tem que ser branca, tem que ser magra, tem que ser rica. Não tenho nada a reclamar das minhas duas mães, só a agradecer – diz a menina.
Para Fabiana, que é cozinheira, frequentar e levar a filha à Parada Livre é reforçar a cada ano a luta contra um preconceito que ela diz sentir no dia a dia, porém menos a cada ano. Acredita que aos poucos a sociedade se mostra mais aberta, embora considere que um casal de mulheres encontre menos resistência ao caminhar na rua do que um casal de homens.
– É um dia nosso, de mostrar que somos felizes, que somos educadas. E também uma maneira de mostrar, quanto mais o evento cresce, de que aquela pessoa que é homossexual, mas ainda não se assumiu, não estará sozinha se o fizer. Ela terá muita gente a apoiá-la na sua escolha.
PARA ASSISTIR EM CASA
A transmissão da 20ª Parada Livre de Caxias, que ocorre neste sábado, pode ser conferida ao vivo na página do Facebook do Centro de Cultura Ordovás (@centrodeculturaordovas) e da Parada Livre (@paradalivre), a partir das 20h.
A programação conta com shows de Carol Roge, Debby Thomas, Douglas Butzke, Douglas Roge, Juliana Rayker, Lolita Bombom, Magnólia Summer, Roberto Desobedeça, Stefanny Strauss e Xandy Mattos. A apresentação do evento fica por conta das drags Giovanna Playmobil e Valma Classic Kieer.
A realização é da Diretoria de Arte e Cultura da Secretaria Municipal da Cultura, Comissão Organizadora da Parada Livre e Nox Versus.
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