No último dia 5 de julho, Soely Santuari completou 90 anos de vida. Para comemorar a data no Lar da Velhice São Francisco de Assis, em Caxias do Sul, onde vive há um ano, teve festa com direito a bolo encomendado pela sobrinha-neta Ironita Wilbert, 66, e também muito carinho recebido de outros sobrinhos para quem Soely, que não teve filhos, é a avó do coração. A emoção do encontro, de tão verdadeira, fez esquecer que a idosa e os familiares estavam separados pela tela do computador.
– Ela é uma pessoa muito especial para nós e queríamos poder fazer algo para não passar em branco essa idade tão bonita, mesmo não podendo estar juntos fisicamente. Trocando uma ideia com a psicóloga e com os meus irmãos, surgiu a ideia de gravar o vídeo. Comecei a pedir os depoimentos, e acabei reunindo muito mais gente do que se fosse uma festa presencial. Na cabeça dela passou um filme, recordando histórias de muitos familiares que moram longe e até conhecendo bebês que ela ainda nem viu pessoalmente. Não achei que fosse possível sentir essa emoção por um meio digital, mas foi essa a sensação que provei. A emoção pelo olhar, pelo semblante, eu achava que só pudesse sentir na presença – conta Ironita.
Para muitos avós e netos separados devido ao risco de contágio da covid-19 – crianças, afinal, são vetores da doença – a tecnologia tem servido como uma forma de amenizar a saudade. No Lar da Velhice, que abriga cerca de 60 idosos, virou parte da rotina de psicólogas e assistentes sociais mediar os encontros virtuais entre os internos e seus familiares, que desde março estão impedidos de fazer visitas. As chamadas de vídeo são o momento mais aguardado de dias que se tornaram mais repletos de atividades, como bingo, filmes e culinária – maneiras de compensar a perda dos passeios externos e desviar os pensamentos dos velhinhos da saudade.
– A pandemia é uma situação que angustia os idosos, os familiares e também os funcionários, já que nós também temos que controlar os abraços, a proximidade com eles. Se nós encontramos dificuldades e ficamos confusos, imagina eles, que de repente não podem mais sair pra comprar uma coisinha, nem receber visitas, e agora têm que usar máscara. Mas o contato com os familiares, tanto por chamadas quanto por vídeos gravados, são momentos que os alegram muito. Quando a gente coloca um filme pra eles assistirem, aproveitamos também para exibir os vídeos que a família nos manda. São momentos que eles se divertem e se sentem mais tranquilos – comenta a assistente social do asilo, Rejane Polidoro.
Ironita, sob efeito da euforia que sentimos após viver algo marcante, resolveu ir além na homenagem pelos 90 anos da tia-avó. Para colocar em palavras o que sentiu ao ver o sorriso de satisfação da idosa com a família reunida diante dos seus olhos, redigiu uma carta, enviada ao lar e entregue à Soely. A missiva está guardada com carinho no criado-mudo da idosa.
– Nossa família é do interior de Jaquirana, e foi graças à tia Soely, que morava em Caxias, que eu pude vir para a cidade estudar quando era criança. Além de carinho, tem uma gratidão muito grande envolvida. Esse momento difícil nos faz voltar no tempo e por isso escrevi uma cartinha, porque é algo que é do nosso tempo. As palavras escritas no papel têm um valor diferente, pois ficam pra sempre – conta Ironita.
Celebrado no Brasil e em Portugal no dia 26 de julho, o Dia dos Avós é a data que reforça uma das ligações afetivas mais fortes existentes.
– Quando existe um bom vínculo afetivo, esse contato é um momento muito especial, em que existe toda uma disponibilidade para os avós se encontrarem com suas experiências infantis e de trazerem sua história para os seus netos, de estabelecerem um espaço lúdico com os netos. Tendo essa possibilidade criada, o neto tem um grande prazer em estar com os seus avós – destaca a psicóloga Denise Martinez, co-autora do livro Amadurecer - Ensaios sobre o envelhecimento (confira entrevista completa ao final desta reportagem).
Foi assim a relação entre Camila e Lucas Dias, moradores de Novo Hamburgo e netos de Levi Demuti Dias. São muitas as fotos de bons momentos da vida dos irmãos vividos juntos com o avô, como jogos do Grêmio. A relação se tornou mais distante quando, por razões familiares, Levi se mudou para Caxias. Os laços, contudo, voltaram a ser fortalecidos durante a pandemia, muito graças às chamadas de vídeo que Camila e Lucas fazem uma ou duas vezes por semana para o avô, cuja lucidez só não impressiona mais que o bom humor e otimismo aos 95 anos.
– Para o vô é algo muito diferente. De vez em quando tem alguma dificuldade para escutar ou enxergar, mas a gente se diverte com isso e ele também. Ele manda beijo pros conhecidos, pergunta das nossas vidas pra depois contar pros amigos do Lar. Não vemos a hora de poder vê-lo pessoalmente, mas nos deixa tranquilos saber que ele está bem cuidado e vê-lo desfrutar do privilégio que é chegar aos 95 anos com saúde, bom humor e lucidez – comenta Camila, 33 anos.
Após o teste, o reencontro
A psicóloga caxiense Judite Fiorese, 62, atribui ao fato de ter sido avó aos 40 anos o fato de ser sempre muito presente no crescimento dos netos Marco Antônio, 22, e Heitor, cinco. Sempre próximos, nos últimos meses avó e netos experimentaram uma distância difícil de suportar: o mais velho foi morar na Austrália no ano passado, enquanto o mais novo vive com a mãe, em Curitiba. A visita que Judite faria na capital paranaense em meados de abril teve de ser cancelada por conta da pandemia, por isso o melhor recurso encontrado para matar a saudade do netinho foi o vídeo.
– Quando o Heitor e eu conversamos pelo vídeo, a cada dois dias no máximo, o contato que ele quer é o da brincadeira, principalmente mostrar os brinquedos que eu ainda não conheço. Também gosta de mostrar como ele cresceu: “vovó, eu já estou alcançando tal coisa”. A gente tem uma facilidade de estabelecer esse contato pelo lúdico e o vídeo é uma ferramenta que fez toda a diferença, porque para a criança não basta contar, ela quer mostrar – conta Judite.
No início da última semana, o menino enviou um cartão-postal para a avó pelo correio. No entanto, antes mesmo do cartão chegar, a saudade falou mais alto e quem desembarcou em Caxias foi o próprio Heitor.
O pequeno e a mãe, após receberem resultados negativos dos seus testes de covid-19, embarcaram num avião na tarde de quinta-feira (enquanto a avó concedia a entrevista ao Almanaque) e fizeram uma surpresa para Judite, chegando à noite. A festa do reencontro não teve hora para acabar e nem deverá terminar até o Dia dos Avós.
“A gente pode estar presente, mesmo à distância”
Para a psicóloga e psicanalista Denise Martinez Souza, coordenadora do Curso de Especialização em Psicoterapia Psicanalítica de Adultos Maduros do Instituto Cyro Martins, o afastamento prolongado que muitas famílias estão experimentando durante a pandemia, especialmente avós a netos, é uma espécie de luto que precisa e pode ser elaborado. A especialista, que concedeu entrevista por telefone ao Almanaque, considera, no entanto, que a verdadeira presença não precisa ser física, basta que seja atenciosa. Confira abaixo trechos da entrevista:
Almanaque: A tecnologia é uma boa aliada para avós e netos amenizar a saudade e suprir a ausência física durante o isolamento?
Denise Martinez Souza: Observo que os avós, hoje, estão muito mais criativos e disponíveis para aprender questões de tecnologia. Muitos estão utilizando as chamadas em vídeo, alguns chegam a disponibilizar mais de uma hora do seu dia para brincar e jogar com os netos, se fazendo presente mesmo à distância. Trabalhando online me dei conta de que “presencial” não é o melhor termo para descrever quando a gente está junto com alguém fisicamente. Porque a gente pode estar presente mesmo à distância: esse é o grande aprendizado que a gente vai levar desta pandemia. A gente criou formas de estar presente mesmo estando geograficamente distante.
Idosos, de maneira geral, sentem mais ou menos o isolamento?
Para as pessoas mais idosas, talvez, o isolamento tenha um significado diferente. Normalmente a premência de sair à rua, de estar em atividade, já não é tão grande para esse “envelhecente” do que para uma criança de oito anos de idade. A demanda física, a necessidade de gastar energia na rua, para o adulto maduro, já não é a mesma. Existe muita atividade que sublima, como a leitura, a conversa, assistir a uma série ou uma novela. Os adultos jovens estão passando a ter, nesse momento, uma vivência que os mais velhos já têm há mais tempo. Um tipo de convívio com menos contato com as pessoas às vezes faz parte da vida de muitos idosos, que já sentem a necessidade de aprender uma capacidade de estar só porque filhos foram embora, por exemplo. Para muitos, acaba sendo mais fácil estar em confinamento do que para os mais jovens.
A pandemia tem sido um momento de mais medo e maior presença do tema da morte para todos nós. Isso aflige ainda mais os idosos?
A pessoa idosa convive com a ideia da finitude. A possibilidade da morte passa a ser uma constante, diferentemente do que para a criança. Quanto mais velha a pessoa for, mais isso está presente. Isso não torna menos assustador poder pegar o coronavírus e poder vir a falecer, mas a ideia da finitude e da proximidade da morte é algo que se desenvolve à medida que envelhece. Muitos de nós negamos, não queremos encarar, mas essa é a realidade da vida. E por isso muitos idosos, de idade mais avançada, às vezes resistem a ter de ficar confinados. A mídia mostrou de forma muito jocosa algumas pessoas mais velhas querendo sair de casa, desautorizando os filhos que tentam protegê-los. Temos de considerar que, quanto mais a idade avança, mais difícil é a ideia de perder tempo de vida e aceitar que a Covid está impedindo de sair. Para alguns idosos o desejo de viver plenamente envolve sair para a rua.
Diante disso, eles podem achar que a pandemia está roubando o seu tempo com os netos?
A perda do convívio com os netos é um luto que precisamos fazer neste momento. O fato das crianças serem vetores, e justamente elas representarem o maior risco para os idosos, é um luto que precisa ser elaborado, com a esperança de podermos passar por isso e termos uma vacina que permita retomar isso com uma intensidade ainda maior e valorizando ainda mais a possibilidade de contato com as crianças. Esse é um ano que temos que ficar confinados. E posso fazer uma distinção entre confinamento e isolamento. O isolamento significa não termos outro tipo de contato. E a tecnologia nos permite estarmos confinados, mas não necessariamente isolados, pelas formas de termos acesso às pessoas. Não precisamos estar isolados afetivamente. Só temos que nos adaptar a uma nova forma de contato.
E pessoas de idade mais avançada, que às vezes já têm a capacidade de aprendizado da tecnologia ou mesmo a compreensão das situações mais prejudicadas? O que se pode fazer por elas?
Nesse caso, de idosos mais dependentes e que não gozam de tanta autonomia, que já recebem mais cuidados e têm mais dificuldade de aprender, eles devem ter pessoas que possam estar junto com eles, como cuidadores. Cabe a eles propiciar que essas ligações sejam feitas e que possa ajudá-los a se conectar. Em todos os sentidos. Pelas vias da tecnologia e pelo contato afetivo, de poder conversar com seus familiares.
Que importância uma relação afetiva bem desenvolvida entre avós e netos pode ter para a vida de ambos?
Acho que esse contato entre avós e netos é muito especial, tanto para os avós quanto às crianças, porque os avós são modelos de identificação. São aquelas pessoas que têm a história de vida dos pais e dos netos. Eu sempre digo que os netos são como se fossem oxigênio na veia. Revitaliza. Porque nós nos reencontramos com a criança que nós fomos, como nos reconhecemos nos nossos netos, que são um pedaço de nós que segue vivo. Então, essa possibilidade de termos esse pedaço nosso modificado, melhorado, refletido na nossa vida, em que podemos ter vislumbres de nós mesmos, de uma certa forma carrega uma esperança de futuro.