"Um dos raros casos na história, até onde sei, em que a alegria se tornou uma grande notícia".
Assim Michael Lang, a mente por traz da Feira de Arte e Música de Woodstock, define a jornada contada no livro de memórias A Estrada Para Woodstock (365 páginas, R$ 69,90), recém-lançado no Brasil pela editora caxiense Belas Letras. Em pré-venda pelo site da editora, o lançamento chega em momento oportuno. Nesta quinta-feira, celebra-se os 50 anos do início do maior evento cultural do século 20, em que 500 mil pessoas viveram inesquecíveis "três dias de paz e música", conforme prometia o slogan igualmente eternizado no imaginário sessentista.
Além de colocar o leitor nos bastidores das apresentações memoráveis de Santana, Janis Joplin, The Who, Creedence Clearwater Revival e de outros gigantes que subiram ao palco montado em uma fazenda de 240 hectares na cidade de Bethel, estado de Nova Iorque, o livro mistura memórias pessoais de Lang a relatos dos principais envolvidos na organização de Woodstock, pintando um quadro do que era ser jovem e cheio de sonhos nos conturbados anos 1960.
"Na época, nós éramos os únicos esquisitões da nossa escola. Sabíamos que havia alguns nas cidades vizinhas, mas não fazíamos ideia. Esse foi um dos aspectos mais empoderadores de Woodstock. Nós nos demos conta de que éramos um grande número".
O trecho do depoimento de um fã que esteve no festival ajuda a entender o que representava aquele chamado ao qual atenderam mais do que o dobro de pessoas previstas (a organização estimava em 200 mil o público participante nos três dias de evento). Era uma juventude que gritava contra o envio de jovens para lutar no Vietnã e vivia a tensão racial após o assassinato de Martin Luther King, no ano anterior. Que queria experimentar a liberdade do corpo através do sexo livre e da mente com a viagem das drogas, em especial a maconha e o ácido. E que tinha, como catalisador de seus desejos, a música.
Michael Lang, que assina o livro em parceria com a jornalista Holly George-Warren, tinha 24 anos quando organizou Woodstock, tendo como principais parceiros o também produtor Artie Kornfield e os investidores Joel Rosenman e John Roberts. O proprietário da fazenda, Max Yasgur, pode ser considerado o quinto elemento fundamental, pois sem sua boa vontade não haveria festival (vários proprietários negaram alugar suas terras aos hippies). Foi a segunda tentativa de Lang, que antes havia sido dono de uma head shop (loja de utensílios para fumar maconha), de realizar um grande evento. O primeiro foi o Miami Pop Festival, que reuniu nomes como o Grateful Dead e Jimi Hendrix, que também se apresentariam em Woodstock.
"Era uma chance de ver se conseguíamos criar o tipo de mundo pelo qual vínhamos batalhando ao longo da década de 1960: esse seria a nossa declaração política - provar que a paz e a compreensão eram possíveis e criar um testamento ao valor da contracultura", escreve Lang.
Meio século depois, romantiza-se a memória de Woodstock como fazemos com as boas relações que tivemos. Fica o que foi bom: as performances inesquecíveis, a demonstração de que é possível haver coletividade pacífica. Foi uma programação sem atrações principais _ as bandas eram divulgadas em ordem alfabética no cartaz e nomes como The Rolling Stones não foram convidados para que nada fosse maior do que o coletivo. Nem tudo deu certo e boa parte do legado deixado foi a do que não fazer em grandes eventos. Principalmente menosprezar a segurança, o que tornou a entrada gratuita para a maior parte dos visitantes, que atravessaram a cerca derrubada. Não é coincidência que as tentativas seguintes tenham sido fracassadas (a edição de 1999 foi marcada por atos de violência, enquanto a que estava prevista para esse ano sequer ocorreu).
O que deu certo e o que não funcionou, tudo está contado no livro, com devido o distanciamento que 50 anos permitem para a melhor análise de quem, literalmente, afundou o pé na lama para fazer acontecer. Para encerrar com um dos bastidores deliciosos da obra, Lang conta que, horas antes do festival se iniciar, o ambiente era de caos. Sem acesso pelas estradas, todas congestionadas, alguém decidiu pegar um helicóptero para ir até o hotel Holiday Inn para ver como estavam os músicos. No bar, alguém havia colocado cinco dólares em moedas na Jukebox para tocar Hey, Jude 60 vezes seguidas. Todos que estavam no bar cantavam abraçados o mais famoso refrão refrão dos Beatles, entre eles todos os integrantes do The Who, do Jefferson Airplane e Janis Joplin.
"Utopias existem para isso: para iluminar e inspirar outras possibilidades presentes e futuras"
Para o jornalista e colunista do Pioneiro Nivaldo Pereira, Woodstock simbolizou a culminação pacífica das lutas relacionadas ao protagonismo jovem nos anos 1960. Confira uma entrevista com o jornalista:
Almanaque: Meio século depois, como podemos entender e considerar a importância que o festival de Woodstock teve para a sua geração e para as que vieram depois?
Nivaldo Pereira: Assim como a chegada do homem à Lua, ocorrida três semanas antes, o Festival de Woodstock também significou um salto gigantesco para a humanidade, mas no quesito das liberdades individuais. Ele simbolizou uma pacífica culminação das lutas que tiveram lugar em toda a década de 1960 em temas relacionados ao protagonismo jovem, a um estilo de vida alternativo e à expressão sexual e afetiva. Foi uma celebração hippie única, mas que reuniu meio milhão de pessoas dispostas a confraternizar e a respeitar suas diferenças, numa utopia de conotação política sobre um outro mundo possível. E utopias existem para isso: para iluminar e inspirar outras possibilidades presentes e futuras. Falarmos desse evento 50 anos depois ainda atesta a sua força de paradigma para uma vida social que enalteça a arte, o amor, a paz e o respeito.
Qual a importância dos festivais de música para além do entretenimento e da cultura por si só? Em outras palavras, qual alcance que a aglutinação de pessoas ao redor da arte pode ter
Qualquer festival pretende concentrar o maior público em torno de astros comuns aos gostos da plateia. Ou seja, buscam identificar o que pode gerar empatia para um número enorme de pessoas diferentes. São sempre um exercício de encontrar na arte a superação de tensões, o encantamento emocional que dissolve fronteiras individuais, enfim, a catarse positiva que torna possível lidar com a dureza dos dias. Viver a experiência de se irmanar com milhares de pessoas diferentes em torno de um mesmo centro irradiador mostra a potência da arte como agente civilizador. A arte sempre salva o humano, ela vai aonde a vida real não consegue ir. Não pode haver vida civilizada sem arte.
Num exercício de imaginação, comparando cenários e contextos, como seria um Woodstock organizado e realizado no Brasil de 2019?
Uma nova utopia amorosa em tempos distópicos? Fica difícil imaginar! Como um rito dionisíaco de entrega e libertação, como foi Woodstock, talvez somente o Carnaval do Brasil cumpra papel semelhante hoje. Milhões de pessoas em frenesi pela música, pelos sentidos, pelo usufruto da celebração, pela liberdade de ser sem censura! O Carnaval tem sido a mais real manifestação da alma brasileira em tempos de polarizações, ódios e desesperança. Não é à toa o teor lúcido e político que o Carnaval vem expressando quando o império do fake e da manipulação parece se alastrar. Assim, dá para dizer que o Brasil faz a cada ano o melhor Woodstock do planeta. Como diz a marcha do Vinicius: "E no entanto é preciso cantar, mais que nunca é preciso cantar".
Contestação e experimentação
Artigo de Marcelo Caon, historiador
O que você faria se eu cantasse fora do tom? Frase da letra da canção dos Beatles, With A Little Help From My Friends, foi imortalizada na interpretação de Joe Cocker, e simbolizou a geração Woodstock. "Cantar fora do tom" era contestar e experimentar. Essas duas palavras se tornaram subversivas para o Ocidente, em especial entre as décadas de 1950 e 1970. Elas foram reflexo de um movimento criado a partir de uma série de elementos somados, sem o menor planejamento.
Se olharmos para o Festival de Woodstock, não tem como deixar de lado a caracterização e seu processo de construção desde a década de 1950. Disforme, a música emblemática, por exemplo, capturava o blues para um ritmo mais acelerado questionando o modelo de comportamento dos jovens, tal como se apresentava Elvis Presley em seu primeiro álbum, de postura primitiva, diferente da arte das capas dos álbuns posteriores, já com um aspecto mais comportado. Os demais deste grupo de "rock and roll" sofreram todo o tipo de preconceito.
No cinema, o tom era dado por dois filmes ligados à rebeldia: Juventude Transviada e O Selvagem. E dali por diante nada seria simples ou igual, pois na década de 1960, aprofunda-se a crítica ao mainstream do consumo, do comportamento, da Guerra (do Vietnã). Em geral este movimento ficou conhecido como a Contracultura no qual se mesclavam diversos grupos e abordagens, tal como a como a arte de vanguarda, o movimento hippie, o movimento estudantil, a revolução sexual, os panteras negras, o movimento de liberdade sexual e o movimento feminista.
Na experimentação se consagrou outra ideia de universo e de postura artística para além das concepções racionalistas e materialistas de mundo, fundidas na peça teatral " HAIR" e ainda, nas obras dos Beatniks, como On The Road, de Jack Kerouac. Assim, o Festival significaria a amarra de diversos universos, porém sem unificá-los. Caso contrário seria uma volta às metanarrativas unificadoras, o que, no campo intelectual era impossível, pois o pensamento Moderno morria enquanto surgia a Pós-Modernidade.
Crítica ao Establishment como um todo ou a determinado modelo, não importava, já que o Festival elevou o " Maio de 68" aos decibéis que ecoavam sobre aquela geração. Reforçava o direito a paz, ao amor, ao mundo sem conflitos. Assim é impossível não ouvir canções de Jimi Hendrix, Santana, Jeferson Airplane, Bob Dylan, Ravi Shankar, Janis Joplin, The who ou Joan Baez sem pensar neste universo. O que você faria se eu cantasse fora do tom? A resposta vem na mesma letra com a mesma vibração de Joe ao visualizar a multidão: vou continuar com uma pequena ajuda dos meus amigos. Nada mal para uma geração que queria viver em outro tipo de comunidade.
Para chamar de nosso
Foi em Caxias do Sul que ocorreu o mais próximo do que se poderia chamar de um Woodstock brasileiro. Em 1982, o 1º Encontro da Juventude Gaúcha - Cio da Terra, organizado pela União Estadual dos Estudantes (UEE) E realizado nos Pavilhões da Festa da Uva de 29 a 31 de outubro, reuniu cerca de 15 mil pessoas e dezenas de artistas de todo o país.
Além da música, com shows de artistas como Ednardo, Sivuca, Jorge Mautner e Nei Lisboa, o evento foi marcado por diversos debates, palestras e exibições de filmes, com pautas alinhadas ao movimento estudantil num país recém saído da ditadura. Foi o embrião do Fórum Social Mundial, realizado a partir de 2001, e pode ser considerado o pai de festivais alternativos que surgiram nos anos 2000, como o Morrostock-RS, o Pira Rural-RS e o Psicodália-SC.
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