A primeira edição da Tum Tum Semana da Música, que se encerra neste domingo, reuniu dezenas de pessoas em Caxias do Sul interessadas em entender melhor a cadeia produtiva da música. Uma das profissionais que veio dividir experiências por aqui é a pesquisadora, socióloga, especialista em políticas públicas e consultora da Semana Internacional de Música de São Paulo (SIM São Paulo) Dani Ribas. Em conversa com o Pioneiro, a paulistana deu dicas sobre como músicos devem se posicionar no mercado da arte e também refletiu sobre a importância vital da cultura na sociedade. Confira:
Pioneiro: De que forma uma iniciativa como a Tum Tum Semana da Música pode impactar no cenário local?
Dani Ribas: Eu estava fazendo as contas e acho que faz quatro anos que estive aqui, no Festival Brasileiro de Música de Rua e já fiquei super impressionada em como aqui tem uma cena local e que consegue ter bons músicos, bastante efervescente. Bom, a banda Yangos foi indicada ao Grammy Latino e isso não é à toa, não é mérito apenas da banda, é da construção da cena. Acho que esses eventos, tanto o Música de Rua quanto a Tum Tum Semana da Música, eles são de fundamental importância. Imagina o seguinte, uma cena musical é feita por artistas e por outros profissionais que trabalham basicamente para tocar nos espaços de música ao vivo, para gravar discos e para se lançar no mercado. Só que uma cena, quando ela fica encerrada em si mesma, ela acaba se esgotando, então, para a sobrevivência das bandas e dos profissionais, é necessário que essa cena local se articule com outras cenas locais. Essa formação de rede e essa conexão com outras cenas locais vai dando a dimensão de uma cena regional, com suas diversidades e características de cada lugar, começa a haver um circuito. Esses eventos possibilitam justamente a conexão entre essas cenas. Além disso, esses eventos em si têm um impacto econômico. Na rede hoteleira, no comércio da cidade, na gastronomia e vida noturna local. Ou seja, é uma série de impactos positivos, não só na cadeia da música especificamente, mas em outras cadeias.
E esse impacto positivo da cultura é sempre um pouco difícil de mensurar, certo?
Eu fiz recentemente uma pesquisa em que pediam para avaliar o impacto econômico da SIM São Paulo. Sabia-se que existia um impacto econômico, mas não sabia-se como isso acontecia. As próprias atividades econômicas, os códigos de CNAE (Classificação Nacional de Atividades Econômicas), não abrangem a diversidade de funções que a cadeia produtiva da música tem. Então, é uma cadeia pouco rastreável. A pesquisa foi identificar como essas redes se formam, então, essa possibilidade de conexão é o principal ativo, o principal bem que um evento desse (Tum Tum Semana da Música) pode ter como chamariz, não só para o público e para os profissionais que vêm de fora, mas para mostrar ao poder público como isso é importante para a região. E não só para a área da cultura, mas para outras áreas da economia, isso só fortalece a marca da cidade.
Você veio para falar sobre produção cultural. Que dica você daria para as pessoas que estão criando seus projetos na área da música e almejam ser contempladas em editais?
Não vim falar só de produção cultural, mas de como você pode iniciar sua vida e oferecer um projeto, não necessariamente para edital, mas como você pode estruturar sua atividade, colocar no papel, fazer um plano de negócio para aquilo que você está almejando. "Ah, mas música não é negócio", é sim. Os músicos às vezes ainda têm essa mentalidade de que vão "se vender". Não, você pode fazer a sua arte do jeito que você quiser, mas depois que você fez, aí você pensa num plano de negócio para isso. Acho que todas as oficinas aqui vêm dar um pouco essa dimensão do mercado profissional de música. Num projeto, você precisa justificar a relevância do que você está fazendo com números. É também preciso identificar seu público. Você precisa ainda conhecer minimamente qual é o objetivo da política cultural, senão o Estado não vai te financiar. Outra dica que queria dar é para que profissionais e músicos busquem qualificação. O mercado musical muda muito rápido, principalmente agora, de 2013 para 2014, com a chegada do streaming, mudou tudo. Então, mesmo os profissionais mais experientes precisam se qualificar e se manter atualizados. Não existe um curso que ensine tudo, é responsabilidade do músico e do profissional conhecer esse mercado e essa cadeia produtiva.
Você já foi parecerista de diversos editais, qual a principal carência que você diagnostica nos projetos?
Uma delas é que, no campo da justificativa, o pessoal faz autoelogio. Você precisa conhecer a dinâmica do seu mercado. A justificativa precisa ser o embasamento do porquê sua atividade é relevante tendo em face o diagnóstico que você fez da sua região e os objetivos daquela política cultural que está relacionada àquele edital. Outra deficiência que vejo é que as pessoas erram ao definir o público-alvo. Você tem que conhecer profundamente o tipo de coisa que atrai o seu público e como você pensa a lógica para mobilizar novos públicos. Você tem que se relacionar com o seu público para entender como é que ele pensa, em que lugares ele vai, que outras bandas ele escuta, que outras artes ele costuma consumir, quais são seus hábitos gerais. Aí você define as ações. Só fazer de graça e divulgar não é suficiente, é preciso um plano de mobilização.
Os artistas ainda resistem muito a enxergar o universo da cultura para além do fazer artístico?
Isso é geral, não é só aqui. A gente não está pedindo para o artista deixar de ser artista, mas eu também não posso ser uma pessoa do mercado sem conhecer música. Então, é essa troca que você tem que fazer: faça o seu, mas olhe para o outro lado. Todos esses profissionais atuam no mesmo mercado, o músico não pode achar que a casa noturna o explora porque a casa noturna também passa por dificuldade. Vocês fazem parte da mesma cadeia e cada um faz o que consegue para sustentar a atividade. Então, precisa ser criada uma sinergia entre todos os elos da cadeia produtiva. E são esses elos que o músico tem que entender e que muitas vezes ele não entende. Não dá para dizer "esse não é o meu pedaço". Seria como um médico fazer uma cirurgia de coração sem saber nada sobre anestesia.
Por que a cultura costuma ser tachada como uma necessidade secundária, figurando sempre entre as verbas a serem cortadas primeiro e muitas vezes demonizada pela própria opinião popular?
É porque se tem uma falsa ideia, oriunda da falta de informação, que diz o seguinte: políticas culturais são feitas para artistas viverem bem. Não. Política cultural existe porque cultura é um direito humano, assim como o direito à educação, à água. A linguagem é um dado da cultura, sem ela não sobrevivemos em sociedade. Todas as sociedades produzem cultura. Cultura é um dado da humanidade, a gente só é humano porque produz cultura, é um dado intrínseco à existência humana. Cultura é desenvolvimento humano e desenvolvimento da sociedade. O Ministério da Saúde é para os médicos? Não, ele é para a sociedade ter acesso à saúde, a mesma lógica se aplica ao Ministério da Cultura. Ele serve para promover o acesso da sociedade inteira a algo que é fundamental à atividade humana. Só que o Estado não faz cultura, são os artistas que fazem, eles são um meio através do qual o Estado garante o acesso da população a algo que é fundamental. Quem pensa que a política cultural é para privilégio dos artistas mostra a ignorância em relação ao tema, não sabe o que está falando. Convido, inclusive, as pessoas a refletirem sobre o que seríamos sem cultura. Se você pegar todos os países desenvolvidos economicamente, eles não abriram mão de seu desenvolvimento cultural, ao contrário, foi o desenvolvimento cultural que permitiu que esses países mantivessem uma posição de liderança no cenário internacional. A cultura pode, inclusive, reposicionar um país na economia mundial. Se a gente pensar que vive uma etapa de economia do conhecimento, em que a informação faz toda diferença no capitalismo mundial, a cultura é essa geração de conhecimento, agrega valor aos produtos. Mas as pessoas não conseguem perceber essa dimensão da questão, percebem o "ah, é feio, eu não gosto, preciso proibir porque aquilo me agride", não pensam que isso está privando o acesso de outras pessoas. Pessoas que pedem que uma exposição seja censurada, por exemplo, provavelmente são as pessoas que menos vão a museus. É falta de informação. A gente chegou num déficit educacional tão grande que o problema se inverte justamente porque as pessoas não têm informação suficiente para fazer a interpretação daquilo de uma maneira adequada.
O que precisaria ser feito, a longo prazo, para que as pessoas passassem a enxergar com mais clareza o valor da cultura?
Primeiro lugar é educação. A educação ensina a gente não só a pensar, ela dá repertório. Isso é conhecer o outro e falar "legal, ele é diferente mas é humano como eu", isso faz com que você interprete melhor as coisas que você não conhece. Cultura é uma parte muito importante da educação, a gente não pode dissociar. Estamos quase tirando Educação Artística dos currículos com a justificativa de que a escola não é para formar artista. Mas a gente não está formando artista, estamos formando público para as artes, e estamos educando a partir de critérios sensitivos, que são importantes para a inteligência emocional das pessoas. Cultura forma pessoas e isso é o que temos que buscar, a cultura subsidiando os processos humanos. A fórmula para isso eu não tenho, mas certamente não é criminalizando a cultura.
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