Era para ser assaltante, mas Paulo Ricardo Ribeiro virou transgressor. Virou jornalista, virou professor, virou escritor. E agora é escritor. E transgressor. E ponto. A expectativa sobre o "filho de mãe solteira, lavadeira de pratos, analfabeta" e seus vizinhos de morro, em Bom Jesus, era uma só: seriam todos assaltantes. À época, o tráfico de drogas engatinhava. Como mostra o noticiário, entretanto, os ladrões do país acabaram outros.
O Transgressor, que Paulo Ribeiro lança ainda este mês, na Do Arco da Velha Livraria e Café, não é uma biografia, como faz bastante questão de esclarecer. É, sim, um livro recheado de memórias e um retrato da crise aguda atual do país. Mas também uma mistura de ficção e documentário, em que não fica claro onde está o real e onde está o inventado. Típico do autor.
— É um livro de filhos e filhas de mães solteiras, que são centenas de milhares que, por acaso, um sou eu. E, na minha infância, de fato, ouvia na cara: filho de mãe solteira. Este é o futuro do Brasil! Só vai sair porcaria daí, só bandido. Mas não fomos. Pelo que se vê na Lava-Jato, o futuro do Brasil eram outros "filhos de mães solteiras" (eufemismo), pra não repetir aqui no jornal o palavrão do meu narrador — contextualiza Paulo.
A expressão que o escritor acha imprópria para o jornal e que aqui vamos reduzir é fdp. Por extenso, ela abre o livro e aparece mais de 200 vezes no primeiro dos cinco contos do lançamento, Cacambo. O excesso em 50 páginas tem genialidade.
– 277 vezes eu deveria ter repetido. Porque na Operação Lava-Jato já houve 65 acusações criminais contra 277 pessoas (sem repetir o nome) em inquéritos que vão desde a corrupção (propina pagas ou recebidas), ao crime contra o sistema financeiro internacional (contas no Exterior com dinheiro de procedência duvidosa), formação e organização criminosa e lavagem de ativos, em feijão com arroz, lavagem de grana do povo. Por isso, o meu narrador é tão desbocado. Esta é a expiação do meu narrador. Do meu personagem, por consequência, do país que lhe coube viver — justifica o autor.
Cacambo, o narrador, é pura memória, nascido em Bom Jesus, filho de mãe solteira, suportou tudo pela ingenuidade e pelo humor sarcástico. Com Cândido, de Voltaire, como seu melhor amigo, o desaventurado experimenta na carne a teoria do filósofo: "as desgraças particulares fazem o bem geral, de modo que, quanto mais desgraças particulares, maior o bem geral". Mário Bortolotto, dramaturgo, ator, diretor, escritor, entre outros, escreveu a contracapa de O Transgressor e resume o que envolve a abertura da obra:
— Com uma narrativa ousada e veloz, temos aqui a história de um personagem errôneo que não faz a menor ideia da curva em que capotou o seu Fusca. E mesmo assim irá continuar acelerando.
Em Lazarus, o forte conto seguinte, o narrador agora é discípulo do filósofo Arthur Schopenhauer. Além de brincar com telas, o pintor atormentado se diverte com letras, mais especificamente, com palíndromos. Nas artes plásticas, é clara a influência do restinguense Iberê Camargo sobre as obras do personagem. Paulo conviveu com Iberê, em sua casa e ateliê.
As gravuras assinadas por Paulo Ribeiro nesta obra aparecem em página inteira. O 19º livro já é uma alegria para o autor por toda a parte gráfica, e a felicidade começa pela capa. A obra de Manoela Leão faz uma bonita tradução visual do miolo.
– É a capa mais bonita que realmente até hoje tive. Todas as demais são muito feias. A primeira edição de Vitrola dos Ausentes é uma tela cedida por Iberê Camargo e muito mal aproveitada. As demais nem vale a pena comentar – define.
Vitrola, segundo livro do autor, teve a primeira edição, de 1993, esgotada, com 4 mil exemplares vendidos. Foi reeditado em 2005 e adotado na disciplina Literatura Sul-Rio-Grandense, na UFRGS, de Luís Augusto Fischer. Foi nesse livro que Paulo deu vida ao estilo de prosa único, presente também no terceiro conto, Os Pássaros de Ícaro, cujo personagem se apresenta assim: "Eu sou Juvená Rosa mesmo dito, um pé sujo, andarilho de Oaio, e vô inventá procêis a estória mais verdadeira, verdadeira sem mentira que a minha terra há de engoli com eu".
Em resumo, trata-se do "bonjesuês", com expressões só usadas pelos Campos de Cima da Serra. Para quem é visitante estreante, O Transgressor vem com um glossário, com 87 palavras ou expressões. A novidade traz traduções próprias para palavras bem conhecidas. Brasília, por exemplo, vira "zona do meretrício, local de prostituição. O local passou a ser chamado assim porque coincidiu a transferência da zona do meretrício (então dentro do centro urbano) para um local afastado da cidade, na mesma época da inauguração da nova capital. O aglomerado de casas não existe mais". Mas o glossário é principalmente uma muleta para quem jamais passou perto de Bom Jesus.
— O que é frestear? Lá na minha infância era deixar um espaço entre os dois corpos numa dança. E os pais faziam isso nos bailes em que as filhas dançavam. Significa também espiar, olhar sem ser percebido. E é coisa que um escritor deve aprender a fazer se quiser ser bom — relembra e ensina o autor.
As Mãos Trêmulas de Aeiou, penúltimo conto, traz uma "retrospectiva histórica da Usina dos Touros, com o quadro de suas grandes nevascas, a de 1942 e a de 1965, tem uma força contundente em sua reconstrução de material deixado pela memória". A descrição é José Clemente Pozenato, na apresentação da obra.
E, finalmente, O Cabelo de Dalila traz um escritor em crise, por ser transgressor e não conseguir mais escrever como imagina. E sua relação com a mulher também está em crise, e a transgressão deles é se negar a qualquer DR. O protagonista Cacambo diz "escrever é isso: memória. Isso: 99% memória".
— É muito parecido com aquilo que o George Harrison dizia dos Beatles: ele viveu, tinha a memória e parece que não aconteceu. É isso: o Cacambo viveu aquela infância filho de mãe solteira, passou por todas aquelas situações de hipocrisia, como ser um pagão perante a Igreja Católica, porque o padre se negou a batizá-lo, a ouvir que seria um bandido quando adulto, e não sabe como suportou. É como o George com os Beatles. Parece que não vivi aquilo e suportei. Parece um sonho ruim. E lembro — explica o autor.
O Transgressor e é dedicado aos filhos e filhas de mães solteiras que o lerem.
Paulo Ribeiro tornou-se o transgressor filho de uma mãe solteira humilde e analfabeta para quem ele quer voltar quando morrer.
Percurso
Foi a leitura, numa casa sem água encanada e sem luz elétrica, que levou Paulo Ribeiro à PUC, à Universidade Nova de Lisboa e à Universidade de Toulouse, à UFRGS e à UCS. Graduado, com dois estágios internacionais, mestre, doutor, foi professor universitário por 22 anos (até março último).
A obra
O Transgressor, de Paulo Ribeiro, Kotter Editorial, Curitiba. 228 páginas, R$ 34,90.