Dira Paes frequenta Gramado há anos. Pudera, são mais de 40 filmes no currículo da paraense de 48 anos. Em 2017, no entanto, a participação da atriz no Festival de Cinema será mais especial, justamente por conta dessa trajetória pujante ao lado de diretores de todos os cantos do país, e dando vida a personagens tão plurais que, como ela mesma diz, representam um "mosaico de existência". A 45ª edição do Festival de Cinema de Gramado celebra a carreira de Dira Paes com o troféu Oscarito, que será entregue na noite de 25 de agosto. A programação será aberta nesta quinta-feira.
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O caminho de Dira pelo cinema cruza com o Rio Grande Sul não só pelas passagens da atriz em Gramado. Ela participou de pelo menos dois clássicos filmados em solo gaúcho: Anahy de Las Misiones (1997), com o qual atravessou o Estado "de Uruguaiana a Cambará do Sul" na turnê de divulgação; e Meu Tio Matou um Cara (2004), quando ela já era uma estrela conhecida do Brasil inteiro por conta de seus trabalhos na tevê. Outra produção gaúcha, Noite de São João (2003), dirigida por Sérgio Silva (com quem Dira já havia trabalho em Anahy), rendeu o kikito de melhor atriz coadjuvante. O festival também a escolheu como melhor atriz em 2011, pelo curta paraense Ribeirinhos do Asfalto.
Entre Helenas (2 Filhos de Francisco) e Belas (Baixio das Bestas), Dira também encontrou espaço para Solineuzas (da série A Diarista) e Norminhas (da novela Caminho das Índias), construindo um trânsito diversificado entre artes.Veja abaixo a entrevista que a atriz concedeu ao Pioneiro por telefone:
Pioneiro: Que peso tem uma homenagem como a que você está prestes a receber no Festival de Cinema de Gramado?
Dira Paes: Eu estou me sentindo muito honrada, porque eu já estive muitas vezes na plateia aplaudindo ídolos que eu admirava e que tinham, de alguma forma, feito parte da minha vida. Já me emocionei muito vendo esses ídolos recebendo, então eu estou me colocando nesse lugar e é quase como se não fosse eu, não sei, uma sensação de ausência e presença, como se você estivesse se observando e é uma história que passa pela sua vida, das vezes em que eu estive em Gramado, das vezes em que eu recebi o Kikito, dos filmes que eu assisti e das pessoas que eu conheci, dos hotéis que eu fiquei, e também um pouco você relembra a sua carreira, né? Os filmes que me fizeram estar ali também, o cinema, a retomada do cinema brasileiro, tudo passou por Gramado. Então, são vários perfis de lembranças que vêm a toda hora em mente, e eu estou meio anestesiada ainda, sei que já está ficando perto e estou nervosa.
Ficaram muito marcadas por aqui as tuas participações em "Anahy de Las Misiones" e "Meu Tio Matou um Cara". Qual tua relação com o RS?
Eu tive uma relação que veio do extremo oposto (já que a atriz vem do Pará) e acho que conheço mais o Rio Grande do Sul do que muitos gaúchos conhecem. Porque (com a turnê do Anahy) eu fui de ponta a ponta, eu fui da fronteira de Uruguaiana até Cambará do Sul, Aparados da Serra, a gente também foi ali no meio, Caçapava do Sul, então a gente fez todo um trajeto que foi incrível e, para mim, foi muito especial ter esse contato profundo com o Estado, foi uma relação de envolvimento com o Estado através da arte, foi muito profundo tudo que aconteceu. Anahy foi um acontecimento, eu e Marquinhos Palmeira sempre relembramos. Eu tenho muito a agradecer ao Sérgio Silva, as lembranças que eu tenho dele são as melhores, os momentos mais especiais da minha vida, principalmente nessa retomada onde o cinema aconteceu mesmo. Então, para mim, o Sérgio e a Araci Esteves, por exemplo, são referências incríveis. Junto com a Monica Schmiedt, produtora do filme, que nós perdemos, são pessoas que estão para sempre no meu coração, na minha história, e essas pessoas vão estar presentes também, de alguma forma, nesse prêmio.
O Meu Tio Matou um Cara é um filmaço. E o Jorge é um gênio, fiz um curta metragem com ele. Eu fiz três curtas na vida, dois de diretores paraenses, e um de um diretor gaúcho, que é o Furtado. Eu amo essa polarização Belém-Porto Alegre. (...) As pessoas polarizam entre Rio-SP, vamos polarizar entre Belém-POA agora. Fica a dica (risos).
Você foi uma das protagonistas da chamada retomada do cinema brasileiro. Como avalia a atual situação do setor audiovisual? Onde é preciso avançar?
O cinema brasileiro é pujante, ele é forte, ele é potente, ele surpreende, porque nós somos um país da diversidade. O cinema traduz esse Brasil diverso, sempre mostrou esses "Brasis" para o mundo. Isso tem que ser reconhecido, a força do cinema brasileiro. É uma arte com um alcance muito grande, é uma arte que viaja para o mundo inteiro, é uma identidade que viaja para todo lugar através do cinema. Vide Boi Neon, vide O Som ao Redor. Todo ano o Brasil surpreende com filmes. Isso tem se traduzido também nos documentários do Eryk Rocha. Agora, a situação é de constante tentativa de estabelecer esse reconhecimento e que as políticas públicas sejam voltadas para incentivar o audiovisual brasileiro, porque é o conteúdo do mundo. A imagem passou a ser o conteúdo do mundo. A imagem passou a ser um reflexo de todo mundo que produz imagem hoje em dia. No seu celular, você é capaz de fazer seu próprio filme. Então é uma linguagem visual, é uma linguagem de demanda, é um Brasil diverso, com cenários incríveis, com profissionais que nem preciso falar, então é um mercado de trabalho que tem que ser reconhecido como tal. Vide o que outros mercados, como o americano, alcançaram e como fizeram a história do mundo através do cinema. O cinema brasileiro tem que ser olhado como um mercado cultural de grande potência. É o mercado do entretenimento, mas a gente está falando de cultura, de identidade, de capacidade de alcance. E que tem tudo a ver com essa fase imagética do mundo.
Você tem uma lista muito heterogênea de personagens. Quais critérios analisa para escolher os trabalhos dos quais vai participar?
Estou muito feliz de estar ouvindo essa pergunta, porque foi isso que eu busquei. Eu busquei, vamos dizer assim, uma paleta colorida dentro das personagens, uma paleta que me oferecesse novos desafios porque você precisa ser estimulado pelo novo. Tem a ver muito com uma mentalidade da criança de ser ator, porque as necessidades de uma criança são as necessidades do ator. O ator brinca, entre aspas, tanto que o inglês e o francês traduzem da mesma forma, "play" e "jouer", então você joga, você brinca. É o que a gente faz. Então, essas necessidades lúdicas nos estimulam muito. Lúdicas e... trágicas. E tudo é estímulo, então, o meu desejo é justamente esse, é dar continuidade a uma tentativa de sair sempre do conforto e estar buscando experiências novas.
Muito tem se falado sobre a necessidade de uma reinvenção da televisão. Por onde essa reinvenção passa? O que a TV precisa para ser mais relevante?
Nós entendemos a nova linguagem. Por exemplo, eu entendo quando um adolescente não sabe quem sou porque não tem uma referência do cinema brasileiro, nem da televisão, é uma pessoa que já está vivendo os novos tempos, está interessado em outras coisas. Mas as coisas não são excludentes. Elas são concomitantes. Então, ao mesmo tempo em que a gente continua fazendo o que muita gente gosta, que é novela, a televisão já está tentando novas formas de fazer dramaturgia. Eu acho que a gente vai ter esses dois caminhos que já estão acontecendo. Tem tido muito êxito, por exemplo, em Amores Roubados, foi incrível que no começo das férias as pessoas se ligassem na minissérie como as pessoas se ligaram. Acho que a gente está caminhando para uma linguagem universal, mas estamos fazendo parte dos dois séculos ainda. Estamos com um pé aqui e outro ali. É concomitante, é junto.
Há uma lista enorme de personagens que você viveu na ficção, quais são os mais especiais?
Tem os (personagens) que as pessoas conhecem mais, tem os que foram mais desafiadores, tem os que foram frustrantes. Eu acho que é uma coleção, sabe. É um mosaico de existência, são muitos anos. Eu tenho 32 anos de carreira. Então, são muitos anos. É bom, agora, olhar e ver que foi uma entrega. Foi uma disponibilidade. Cotidianamente você se desnuda, morre para um personagem e nasce para outro, se carrega de novos estímulos para aquele momento que vai viver. Existem personagens icônicas conforme a região do país. Por exemplo, no Nordeste falam muito de Dadá, do (filme) Corisco & Dadá. Também sou muito lembrada por Dona Helena, de 2 Filhos de Francisco. Na televisão, as pessoas comentam muito os últimos personagens. Da Celeste, de Amores Roubados. A Norminha, de Caminhos das Índias. Aí tem ainda a mãe da Morena, de Salve Jorge. E tem a Solineuza, que foi uma geração que assistiu na adolescência e agora é um crush, sabe? Ela é uma palhaça do povo e é muito bom isso. É muito bom já ter feito essa palhaça, já ter feito a mãe guerreira. Os personagens sempre tocam alguém. Sempre tem alguém que, em algum momento, quando você expõe um trabalho que pensa que nem foi tanto, sempre tem alguém que vem e fala daquilo que você acha que ninguém percebeu, então foi muito bom.
Uma vez vi alguém falando que gostava de trabalhar com atrizes como você e a Adriana Esteves, por exemplo, porque tinham o rosto da mulher brasileira, uma mulher de verdade. Você acredita que essa característica te abre portas?
Eu fico feliz, eu não vi esse comentário, mas eu gosto muito disso. Acho curioso porque não é a primeira pessoa que fala da Adriana Esteves e eu gosto muito dela. É uma musa inspiradora e é uma atriz que você não sabe o que vem, ela surpreende, vai realmente de A a Z, ela é incrível. É exatamente isso que eu admiro e quero construir também, é o que eu busco. Então eu acho que é esse colorido que resulta nisso. Nós não temos essa busca talvez de ser maior que o próprio personagem. O cotidiano talvez transmita isso também.
Parece que vocês não são tão ligadas a uma glamourização da profissão...
Acho que acontece com muitas atrizes, acontece com todas, eu acho. E você vai se adequando à sua própria verdade. O desafio é estar sempre indo em busca da sua própria felicidade e o que você quer para sua vida. Esse é o meu ponto de partida, para tudo.
Quais teus principais objetivos?
Eu quero viver a transformação da minha máscara, eu quero ver meus netos nascerem, eu quero ser uma pessoa que tenha tempo de apreciar a vida no sentido do afeto, da arte, de ver um país mais justo, menos desigual, de poder vivenciar isso. É uma utopia, então vamos com ela mesmo. Eu sei que é uma utopia, mas é com ela que eu quero me atracar (risos).