Graziela Andreatta, especial para o Pioneiro
Novas maneiras menos individualistas de pensar e agir vêm conquistando espaço. Tem mais gente preocupada com o meio ambiente, com a origem dos alimentos, com o consumismo em excesso, enfim, com coisas que fazem do mundo um lugar melhor. Que tal, então, aplicar essa mesma lógica às roupas que a gente compra? É o que propõe o Fashion Revolution, um movimento mundial surgido em 2014 que pretende, como diz o nome, fazer a revolução na moda.
Para se engajar é simples. Basta se fazer a seguinte pergunta: quem fez as roupas que eu uso? E, a partir daí, tomar uma decisão. A estilista caxiense Daiane Vanzin, 32 anos, explica:
– Você pega as suas roupas, presta atenção nos detalhes da costura, dos acabamentos, olha as etiquetas para ver onde foram feitas, e se questiona sobre quem fez e em que condições: foi a costureira que mora na rua ao lado da sua, na casa dela ou em uma pequena fábrica que trata bem seus trabalhadores? Ou foi algum desconhecido do outro lado do planeta, sabe-se lá em que condições de trabalho? E aí você escolhe que tipo de roupa você quer usar e que tipo de indústria você quer apoiar.
A Revolução da Moda foi criada um ano após a tragédia no edifício Rana Plaza, em Dacca, Bangladesh, ocorrida em 24 de abril de 2013. O prédio desmoronou e 1.138 trabalhadores têxteis morreram soterrados. Outros 2,5 mil ficaram feridos. Eles trabalhavam para fábricas de roupas fornecedoras de famosas redes e marcas mundiais, em jornadas exaustivas, condições degradantes e sem os mínimos direitos trabalhistas, situação que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) descreve como análoga à escravidão.
O movimento surgiu para defender uma maior transparência, sustentabilidade e ética na indústria da moda. E também para propor uma mudança radical no modo como as empresas produzem as roupas e em como as pessoas as compram.
– A indústria da moda cria desejos e padrões muitas vezes impossíveis. Isso gera uma necessidade falsa de consumo. É preciso parar de forçar os profissionais da moda a trabalharem tanto. É preciso parar de consumir tanto – alerta Daiane.
Foi pensando nisso que ela decidiu deixar o emprego que tinha para criar sua própria marca de roupas, a Bien. O conceito é o que ela chama de roupa silenciosa, sem grandes estampas ou logomarcas, que sejam confortáveis, possam ser usadas em muitos lugares e ocasiões diferentes, e resistam a várias estações.
– A ideia é fazer peças que durem muito, o que exige que elas tenham uma qualidade maior também, para que as pessoas não precisem comprar tanto e consumam com consciência. Esse conceito de sustentabilidade que se aplica a várias outras coisas, precisa migrar para a moda – diz.
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Sustentabilidade ao pé da letra
Ninguém está se apropriando melhor do conceito de sustentabilidade aplicado à moda do que as novas gerações. É o caso da estilista Helen Minuzzi, 24, criadora da marca Mangue. Todas as roupas e acessórios que ela produz são feitos em material ecologicamente correto e de origem conhecida e atestada. Atualmente, usa algodão orgânico de uma cooperativa de produtores do Rio Grande do Sul, retalhos de tecidos que não são usados pela indústria têxtil e lonas de caminhão reaproveitadas.
Ela faz quase tudo sozinha:
– Desenho, corto e costuro as roupas. As lonas de caminhão, também higienizo e amacio antes de fazer as peças. Às vezes, tenho ajuda de uma costureira, quando tem algum evento. E de vez em quando faço parcerias com artistas e artesãs locais – conta.
Helen realiza esse trabalho há um ano e meio, mas graças a ele já foi convidada para o Paraty Eco Festival, em Paraty (RJ), onde apresentou suas ideias. Além disso, fez peças em lona e customizações para a banda caxiense Maragá e um figurino com jeans de brechó para o projeto CCOMA, que rodou vários estados brasileiros com a roupa.
– Acredito que em todas as áreas, não apenas na moda, quanto mais tu puderes trabalhar de uma forma que gere menos danos ao ambiente e à sociedade, melhor. Precisamos consumir bens, mas consumir de maneira consciente é bem diferente do que apenas consumir. Acho que essa escolha é também um ato político, porque se trata de investir nosso dinheiro onde há ideias alinhadas com as nossas – afirma.
Tem de haver um propósito
Ao falar de sustentabilidade e alinhamento político, Helen descreve o que o professor e especialista em marketing e moda André Carvalhal chama de fazer "moda com propósito". Ele lançou um livro com esse título no final de 2016, após deixar a gerência de marketing e conteúdo da marca carioca Farm, onde trabalhou por quase 10 anos, para se dedicar a um projeto de moda colaborativa em São Paulo.
No livro, Carvalhal questiona a ansiedade gerada pelo consumismo, que tem feito as pessoas comprarem coisas sem necessidade, e levado as marcas a se preocuparem apenas em vender. "Será que realmente precisamos de mais roupas? De mais marcas de roupas? Ou precisamos de profundidade, de marcas que tenham propósito e que entendam que seu papel vai bem além de apenas vender?", pergunta em um trecho do livro.
Para a estilista Franciele Hermoza, 31, da marca Fran Hermoza, é quase impossível dissociar a moda do papel social que ela exerce.
– O grande diferencial das marcas autorais é ter o recurso de criar coleções focadas na sustentabilidade social, que é abordar temas importantes de acordo com suas crenças e influências políticas.Acredito que as marcas podem contribuir, de alguma maneira, com as pessoas que consomem, com o meio social e com o mundo – diz.
Pensando assim, Fran fez uma coleção inteira voltada para as mulheres negras, com peças desalongadas que tinham o objetivo de fugir do estereótipo que vincula diretamente mulheres negras à sexualidade. A próxima será sobre androginia, para transmitir a mensagem de que as pessoas podem ser o que elas quiserem.
– Temos de quebrar um pouco esses padrões – defende.
Voltando às origens
Quebrar padrões, ser sustentável, politicamente correto e menos consumista não parece ser uma tarefa fácil diante de toda a oferta do mercado da moda. Ana Carolina De Tomasi, 31, tem uma sugestão: uma volta às origens, quando as pessoas faziam suas roupas em costureiras. Ela mesma já fez esse exercício ao decidir que seria identificada como costureira e não como estilista, apesar de ter formação em Moda.
– Quando falamos em moda, a última coisa que pensamos é em quem costurou. Mas essa deveria ser a primeira. Sem a costureira, nada sai do papel – lembra.
Ana Carolina tem um ateliê com o nome dela, onde faz tudo sozinha, da elaboração à finalização das peças. E ela chama a atenção para um detalhe que é privilégio apenas das pessoas que sabem quem fez suas roupas e têm a certeza de que elas não foram feitas às custas da exploração de alguém ou degradação de algum recurso natural.
– Acredito que as coisas transmitem história, energia, carinho. O mundo está tão cinza, tão pesado. Estar próximo das pessoas faz tudo ficar mais leve e feliz. Estar próximo de quem fez a roupa que a gente vai usar carrega essa energia – compara.
Trabalho escravo na industrial têxtil: assunto muito sério
"Eu não fui feito na China", diz o carimbo desenvolvido pela designer de Brasília Tereza Pires, 36. Ela vende o item no Brasil inteiro a artesãos de diversas áreas, inclusive a produtores que fazem moda sozinhos ou organizados em coletivos. São pessoas que lutam para sobreviver diante da concorrência das grandes redes, que não compram roupas apenas na China, mas também em países como Índia, Marrocos, Paquistão, Vietnam, Camboja e Bangladesh.
A ideia da designer foi criar uma mensagem que deixasse claro, de uma maneira leve e divertida, que aquele produto tinha sido produzido localmente e de maneira artesanal.
– Acredito que todo o trabalho artesanal leva um pouco da nossa alma. Por isso ele é tão especial também. Ele tem esse carinho e essa energia que não existe em um produto massificado – diz Tereza.
Mesmo sem querer, ela acabou sintetizando em um carimbo um dos motes da Revolução da Moda. Produtos locais e feitos em pequena escala são justamente o contraponto à exploração de trabalhadores da indústria têxtil, principalmente em países mais pobres e com leis trabalhistas precárias.
O auditor-fiscal do Trabalho, Renato Bignami, que integra o Programa de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho, fiscaliza indústrias têxteis há pelo menos 10 anos. Ele realizou as primeiras ações quando a Superintendência do Trabalho e Emprego de São Paulo decidiu investigar o aumento das denúncias relacionadas à imigração irregular de trabalhadores andinos. Eles estavam indo para a região metropolitana de São Paulo, onde trabalhavam em oficinas de costura informais.
Bignami conta que a indústria têxtil brasileira é a quarta maior produtora de roupas prontas e acabadas do mundo, e o setor é o segundo maior empregador industrial do Brasil. No entanto, apesar dessa dimensão, há subsetores dessa indústria que sofrem com a concorrência dos importados e, na ânsia de reduzir custos, aumentar lucros e a margem de flexibilidade laboral, subcontratam intensamente várias parcelas da produção para manufaturas pouco estruturadas.
– Quando as condições de trabalho são extremas, precárias e aumentam consideravelmente o risco para os trabalhadores, dizemos que ocorre o chamado "sistema do suor", do inglês "sweating system", que é semelhante à escravidão – explica.
São casos em que os trabalhadores são forçados a cortar e costurar ininterruptamente em jornadas exaustivas, sem descanso, em locais insalubres e com salário incompatível. Muitos são envolvidos no sistema de "servidão por dívida" (grande parte, migrantes aliciados em seu país de origem), são obrigados a dormir no mesmo ambiente onde trabalham e mantidos no lugar sob ameaça.
– O fast fashion acelerou consideravelmente os impulsos produtivos, deslocando para pequenas unidades fabris, desprovidas de lastro econômico, a responsabilidade por produzir roupa de forma barata e ágil. Isso criou as condições para o surgimento do sistema do suor e do trabalho escravo. Estima-se que haja alguns milhares de trabalhadores nessa condição – complementa Bignami.
Em busca de uma nova maneira de produzir
Embora a maior parte dos produtores de moda engajados na sustentabilidade social e ambiental sejam estilistas de marcas pequenas e coletivos de moda, há também um grupo de empresários que começa a se engajar na mudança. A empresa gaúcha Rala Bela abriu as portas no último dia 24 para alunos de moda com o objetivo de mostrar o ambiente de trabalho e o processo produtivo na fábrica, localizada em Bom Princípio.
– Nossa ideia foi mostrar aos universitários os nomes e histórias que estão por trás da nossa cadeia de produção, as pessoas que colocam a mão na massa na Rala Bela – explica a diretora da empresa, Marinês Luft, lembrando que toda a produção da empresa está concentrada no estado e 90% da matéria-prima é nacional, número que ela pretende aumentar. – Queremos chegar a 100%.
Caxias engajada
Caxias não ficou de fora da programação da Revolução da Moda, que está sendo tema de eventos em todo o mundo neste mês. O Fashion Revolution Caxias terá uma programação extensa neste sábado (29) para quem quiser saber mais sobre o movimento e conhecer alguns dos produtores locais.
Uma das organizadoras do evento, a fotógrafa Tuany Areze, 24, explica que o objetivo é trazer o debate, que é mundial, para a cidade. Ela também pretende provocar nas pessoas uma reflexão a respeito do que elas consomem quando optam por comprar roupas de empresas que não se preocupam com a sustentabilidade ambiental e social.
– O fast fashion, principalmente, além de vender roupas de má qualidade, produz em excesso e incentiva o consumo desenfreado, porque o foco está apenas no lucro, em detrimento de qualquer propósito. Além disso, muitas vezes objetifica a mulher, forçando padrões irreais e de consequências negativas – opina.
Quer saber mais sobre isso?
O que: Fashion Revolution Caxias
Quando: 29 de abril (sábado), às 15h30min
Onde: Zero 54 (Rua Augusto Pestana, 154)
Programação
Palestras:
- Design e Moda Sustentável, com Márcia Garbin
- Sustentabilidade e materiais alternativos, com Hellen Minuzzi
- Consumo Consciente, com Milena Faé (Closet Detox)
- Banco do Vestuário (Apoio Secretaria do Meio Ambiente)
- Moda e Empreendedorismo Social, com Mário Pereira
- Exposição Fotográfica Anti Fashion
- Troca de Roupas
- Espaço Rede: espaço destinado para marcas e criadores locais exporem seus produtos e ideias e conversarem com as pessoas sobre seus processos de produção e materiais utilizados
- Oficina: Bordado para Upcycling, com Cateline Padilha (Um Pontinho)