"Muitos anos depois, frente ao pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía recordaria aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo". Por muitos anos, a frase inicial de Cem anos de solidão provocou uma espécie de obsessão em mim. Como uma simples sentença pode ser capaz de prender o leitor tão rapidamente? Pra ser mais precisa, ela sintetizava toda minha admiração pelo talento na escrita de Gabriel García Márquez – como queria ter essa capacidade de expressão! – e meu encantamento pelo realismo mágico, pelo movimento literário que colocou os pensadores da América Latina em evidência e tudo mais.
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Foi pelas páginas de alguns livros dele, inclusive, que comecei a conhecer a Colômbia. Quando, anos depois, pisei em Cartagena – cidade colonial e muralhada banhada pelo mar do Caribe – e me hospedei no convento Santa Clara, que serviu de pano de fundo para Do Amor e Outros Demônios e foi transformado em hotel, experimentei algumas sensações reais daquilo que tinha lido. Da sacada, inclusive, podia avistar a casa que o escritor mantinha na cidade, com muros altos e jardim amplo. Fuçando nas livrarias cartaginenses descobri Rosario Tijeras, a jovem assassina e sexy, personagem do livro homônimo de Jorge Franco Ramos, a quem García Márquez admirava. Essa trama se passa na época em que a violência chegou ao país, na década de 1980, junto ao narcotráfico.
Ao pisar na Colômbia, apesar do aparato policial no aeroporto, senti um clima bem diverso desse, do senso comum. Percebi muitas cores pelas ruas, as igrejas da cidade murada estavam sempre repletas de noivas e havia ainda possibilidade de cruzar por um adorável lugar chamado Portal de los dulces! Sim, as iguarias locais ficavam concentradas em uma espécie de corredor. Não era só uma galeria, mas também uma metáfora: doçura se estendia ao povo, atencioso e querido. Podia citar outra Colômbia, mais ou menos presente no meu imaginário, aquela de Shakira. No primeiro show que a assisti, em Caxias, ela tinha cabelão preto, quadris pouco rebolativos e lançava o álbum Pies descalzos. Mais tarde, confesso, também tentei mostrar que my hips don't lie – só por diversão. Gosto da cantora porque ela está longe de ser só voz e performance: ela mantém um projeto social importante no país, tem um olhar voltado para o combate à pobreza e se faz protagonista nessa luta. E meu desfile de celebridades colombianas óbvias se encerraria com o menino James Rodriguez, que faz questão de ser chamado com a pronúncia espanhola – Râmes. Como escrevi uma tese versando sobre como os nomes expressam, também, uma cultura, acho uma fofura essa imposição dele.
A menção desses três, com mundos, influências culturais e repercussões tão diferentes entre si, é só uma simplificação para mostrar quanto conheço (conhecemos?) pouco o país vizinho. Minha quase ignorância foi substituída, há poucos dias, por um orgulho imenso – bem maior do que a admiração que sinto pela verve do Gabo.
A tragédia com o avião da Chapecoense, além de evidenciar a fragilidade da vida, dimensionou a grandeza do povo colombiano. A homenagem no estádio onde o jogo seria realizado ainda ecoa e me avisa: preciso ampliar meu espectro e admirar não só um ou outro, mas todos os colombianos. Milhares deles, sem querer, ensinaram que respeito, solidariedade e amor ao próximo podem até não curar as feridas, mas ajudam a amenizar a dor. Num gesto, me obrigaram a acreditar que, sim, podemos – e devemos – ser melhores. Apesar da dor, apesar da correria, apesar das incertezas, apesar de nós mesmos.
Opinião
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