Resisti, confesso. Tentei desviar do assunto o dia todo. Em meio aos prosaicos afazeres a morte de Antonio Cicero reverberava. Mais um poeta que embarca rumo ao infinito à bordo de uma nau intergaláctica. Poeta e filósofo, aliás. Da prosa ao verso, ele deixa por aqui um punhado de canções e livros. Depois da morte o clichê é inevitável: vai o homem fica a obra.
No caso de Antonio Cicero, a tônica do obituário na imprensa não foi tanto a sua obra ou a saudade de quem fica. Tampouco os versos entoados pela irmã, Marina Lima, ou por Adriana Calcanhotto, João Bosco, Lulu Santos e tantos outros. O maior destaque foi a morte por eutanásia, o dito suicídio assistido. Reportagem publicada em GZH, escrita pela minha colega Yasmim Girardi, explica que o poeta sofria de Alzheimer e optou pela prática, realizada na Suíça.
“A morte assistida, termo que pode se referir tanto à eutanásia quanto ao suicídio assistido, é permitida na Holanda, Bélgica, em Luxemburgo, na Suíça, no Canadá, na Colômbia e em alguns locais dos Estados Unidos, como Oregon e Califórnia, por exemplo”, descreve Yasmim.
Não vou cair na armadilha de questionar ou defender a decisão pela eutanásia. Não posso dizer que posição tomaria no lugar dele, na pressão do Alzheimer. Não citarei também trecho algum da carta de despedida que Antonio Cicero deixou aos amigos.
Retomo aqui, nessa crônica encharcada de dor e de lágrimas, uma das 130 canções que o poeta compôs e que ressoa suave, doce e envolvente na voz da Adriana. Não por acaso, Inverno está no disco A Fábrica do Poema, lançado em 1994.
Há tanta ternura nos versos “No dia em que fui mais feliz / Eu vi um avião / Se espelhar no seu olhar / Até sumir”. Ao mesmo tempo, logo a seguir vem a saudade, carregada de melancolia, confrontando o sentido da ternura: “ De lá pra cá não sei / Caminho ao longo do canal / Faço longas cartas pra ninguém / E o inverno no Leblon é quase glacial”.
Fora do universo das palavras e das canções, da poética em prosa ou verso, Antonio Cicero escolheu dizer adeus antes que se esquecesse como é fitar aviões através dos olhos de quem se ama.
Antes do rigor do inverno na Suíça, infinitamente mais glacial do que em Leblon, o poeta, antes de esquecer-se completamente de si mesmo, embarcou no que imagino ser uma nau intergaláctica — acessível apenas aos que passam a vida a poetizar — rumo ao infinito e além.
Vai Antonio Cicero, “sem amarras, barco embriagado ao mar”.