Ainda cabe nesse mundo superlativo a crônica da observação micro, da gotícula de água que escorre pelo vidro? Mesmo depois da chuva, as gotículas persistem, agarradas, segurando-se ao máximo antes que escorram e deixem de ser gotas.
As gotículas transformam a paisagem. Pode ser o mesmo ponto de vista de sempre, depois da chuva as gotas formam desenhos abstratos esmaecendo o que se vê através do vidro. E nada muda essa condição. Pra que volte ao que era antes é preciso esperar pra que cada gotícula escorra pela janela, deixando de ser gota.
A mesma cena, no trânsito chuvoso, poderia nos revelar a maneira como cada motorista conduz seu veículo, a partir da velocidade do limpador de para-brisa. O pragmático diria que o melhor é a velocidade máxima porque as gotas atrapalham o trafegar. Faz sentido.
Faz sentido nessa vida em que parecemos sempre correr contra o tempo, numa jornada hercúlea pra vencer as 24h. E mais do que isso, cumprir as 24h com excelência em todos os papéis, da paternidade ao profissional, na busca da exaltação e glória, porque o que importa é brilhar.
Nessa rotina acelerada perdemos o tempo de depurar, o tempo de observar, tempo de fruir e o tempo de refletir. Essas janelas da pós-modernidade nos afastam do tempo da realidade e nos conduzem a pular de vídeos em vídeos de 40 e poucos segundos.
Pobre Tarkovsky, o cineasta que passou a vida filmando como quem esculpe o tempo. E lá alguém tem tempo pra arte quando a inflação segue causando estragos a cada percentual que sobe, defasando ainda mais o salário do trabalhador?
Boa parte das gotículas ainda se agarram ao vidro, cerca de 2h depois da chuva cessar. Nesse sentido, é como Sacrifício, filme do Tarkovsky, em que a câmera está ali a observar, não interfere na cena, não busca acelerar o tempo que a vida tem.
Da chuva se espera que cumpra o seu propósito de irrigar as lavouras, de encher açudes e represas. Na sua falta, a estiagem provoca terra seca e árida e não haverá colheita dos alimentos que nos mantêm vivos.
Da arte não se espera que sirva pra algo. Não pelo menos no sentido pragmático. O sentido da arte é nos devolver ao estado de poesia, em que até mesmo uma árvore seca pode ser plantada, na esperança de que ela possa voltar a dar flores e frutos.