Na infância lembro-me de dois brinquedos essenciais: uma bola, de gomos brancos e vermelhos, e uma caixa contendo pequenos blocos de madeira para montar. Com estes objetos, o Marcelinho aprendeu a desenvolver os extremos comportamentais. Chutando a bola era barulhento, explosivo, intuitivo e competitivo. Enquanto que com os bloquinhos de madeira em mãos aprendi a trabalhar em silêncio, estimulado pela criatividade, sem perder de vista o propósito e o conceito estético daquela edificação que tomava forma diante dos meus olhos.
Estranhamente, esses dois mundos se cruzaram a partir dos 10 anos. Apesar da vida simples, de um casal lutando juntos para educar seus dois filhos, meus pais sempre tiveram estantes altas até o teto abarrotadas de livros. Os de capa dura pareciam intransponíveis pra um guri como eu. De certa forma, à distância, se pareciam muito com aqueles blocos de madeira com que eu construía cidades e fortalezas. Havia tanta solidez naquelas estantes que suportavam meu peso escalando os andares em busca daquelas obras.
Só compreendi a força dessas estantes como colunas de uma casa enquanto estava organizando os livros nas prateleiras do novo lar para onde eu e minhas filhas viemos morar. Revendo o planejamento de cada ambiente, percebi que absolutamente toda a casa gira em torno da biblioteca. Mais do que tábuas de madeira dispostas horizontalmente sobre as colunas de ferro, esse apartamento está fortemente estabelecido nos ombros desta estante, feita não apenas para guardar livros, mas para suportar as muitas vidas dentro dessas obras.
Na extrema direita, de quem observa a estante de frente, há um pequeno livro de setenta e oito páginas, chamado O homem como invenção de si mesmo, de Ferreira Gullar. É um obra singular na vida do poeta, pois trata-se de uma peça de teatro, escrita como um monólogo de um ato só. “O homem não é um ser natural como os outros animais: é um ser cultural”, defende o personagem inventado por Gullar. E diz mais: “A cidade é o contrário da natureza, pois tudo nela foi criado e feito pelo homem, desde os edifícios e os viadutos até a iluminação elétrica, os veículos, o rádio, a televisão, as lojas comerciais, os parques de diversões, os cinemas, os teatros, tudo”.
Na extrema esquerda da mesma estante, um livro de quase 900 páginas parece desafiar Gullar. Trata-se de Shakespeare: a invenção do humano, escrito por Harold Bloom. Na obra, o autor discorre sua teoria de que “em Shakespeare os personagens não se revelam, mas se desenvolvem, e o fazem porque tem a capacidade de se auto-recriarem”. E prossegue Bloom: “Nenhum outro autor, antes ou depois de Shakespeare, realizou tão bem o verdadeiro milagre de criar vozes, a um só tempo, tão distintas e tão internamente coerentes, para seus personagens principais, que somam mais de cem, e para centenas de personagens secundários, extremamente individualizados”.
Dito isso, parece fazer mais sentido uma vida de invenções do que a realidade em si. Aqueles portais que eu abria na infância soam hoje como memórias de uma densa e ao mesmo tempo poética camada, como se conseguisse caminhar sobre as nuvens, apesar dos dias cinza. Bloom chega ao disparate de defender Hamlet no mesmo quilate de Jesus Cristo, ao passo que Gullar, por meio do seu alterego no monólogo, diz: “O homem inventou a Deus para que este o criasse”.
Aqui na minha biblioteca, erguida como torres a sustentar as paredes da casa, o peso dos livros históricos tem o mesmo peso dos livros de estória. Mas confesso, apraz-me a leitura dos inventores.