Penso que é tudo uma questão de ponto de vista. Sabe Telhados de Paris, aquela canção do Nei Lisboa? Então, talvez eu estrague a visão romântica que muitos têm dessa música. Porque o título nos remete aquela cena invernal observada através de uma janela com vista para os telhados da capital francesa. Dia desses, em um evento por conta do aniversário de 50 anos do 2º Caderno da Zero Hora, em 2015, Nei explicou a inspiração:
— Eu morava em um apartamentinho no Menino Deus que me parecia tão romântico quanto Paris — começa a explicar, arrancando risos da plateia. — E da janela, eu via um casario com telhas francesas, então eram os telhados de Paris.
E tem aquela do Akira Kurosawa. O cineasta japonês participava de uma entrevista coletiva com jornalistas do mundo todo. Lá pelas tantas, um repórter perguntou a ele sobre uma cena do filme Sonhos. O repórter elogiou o enquadramento e perguntou como foi pensar naquela composição.
Ao que Kurosawa lhe respondeu, em uma livre interpretação minha: “Foi muito simples. Se eu abrisse o quadro mais à direita, apareceria parte da equipe de filmagem. E se eu abrisse o quadro mais à esquerda, apareceriam veículos que não são da época em que se passa o filme”.
Ou ainda aquela do Alfred Hitchcock, que por volta de quatro ou cinco anos foi colocado em uma cela onde permaneceu “preso” por cerca de cinco ou dez minutos. O cineasta inglês confirmou a história em entrevista a François Truffaut publicada em livro pela Cia das Letras.
— Meu pai me mandou à delegacia de polícia com uma carta. O delegado leu e me trancou numa cela por cinco, dez minutos, me dizendo: “É isso que se faz com garotinhos levados”.
— E o que você fez para merecer isso? — perguntou Truffaut.
— Não consigo imaginar. Meu pai sempre me chamava de “minha ovelhinha imaculada”. Realmente não consigo imaginar o que pude ter feito.
E a versão do pai? Pois é. Sobre este capítulo em específico, não sabemos. Quando Truffaut disse: “Parece que seu pai era muito severo”. Hitchcock, restringiu-se a dizer:
— Era um grande ansioso.
E, agora, enquanto a neblina traz consigo o estranho entardecer outonal, lembro do olhar de clemência da minha filha caçula conversando comigo dia desses. Ela pisou na bola, perdeu-se na confusão dos ditos pelos não-ditos e caiu na armadilha do ponto de vista de outrem. E nem foi o meu ponto de vista que a fez rever e ressignificar a história. Ela mesma se deu conta, tecendo os fios do enredo como se fosse uma colcha de retalhos. E uma colcha dessas bem quentinhas que deve servir pra encarar esse e tantos invernos que vêm por aí.