Neil Gaiman talvez seja um dos mais aclamados escritores da minha geração. Entre graphic novels consagradas como Sandman e livros de ficção belíssimos como O Oceano No Fim do Caminho, Gaiman é um talento inquestionável. Pois bem, semana passada, no Twitter, o escritor reclamava do péssimo serviço de uma empresa de entregas, como qualquer mero mortal. Reproduziu uma mensagem que havia recebido da transportadora dizendo que sua encomenda havia retornado à central de coleta. Enfim, um desabafo público sobre os pequenos dissabores cotidianos de todos nós.
O bizarro foi que uma seguidora dele, com o codinome “epona”, respondeu ao tweet do escritor dizendo: “Mesmo? É com isso que você está preocupado neste exato momento?”. O “exato momento” ao qual a garota se referiu em tom sarcástico se referia à decisão da Suprema Corte norte-americana de extinguir o direito ao aborto em todo território nacional e devolver o poder de decisão sobre o tema – complexo, sem dúvida – a cada estado dos EUA, o que gerou uma onda de protestos.
Transcrevo a seguir o que Neil Gaiman respondeu à militante para todos nós refletirmos sobre a militância agressiva: “Eu me preocupo com muitas coisas. Para coisas como Aborto, Controle de Armas, escrevo constantemente e coloco todos os links possíveis para entidades que podem ajudar com essas causas. Sobre Refugiados, faço a mesma coisa. Mas eu também me permito falar aqui [no Twitter] sobre coisas pequenas, ou não haveria sentido algum.”,
Na minha interpretação, Gaiman tocou num ponto fundamental sobre os tempos em que vivemos: existem muitos temas controversos e pertinentes, mas não podemos deixar que todas as misérias e todo sofrimento humano, todas as falhas da humanidade pautem nosso dia a dia. Caso contrário, que sentido haveria em viver? Que graça há em travar embates constantes, se envolver em conflitos e atritos encadeados um após o outro (ou, pior, misturados num caldeirão único e incoerente como é típico da militância mais raivosa)?
Já percebi que os militantes mais radicais de qualquer agenda – progressista ou conservadora – são pessoas que há tempos abandonaram sua individualidade e, como diz Neil Gaiman, “as coisas pequenas” do viver. Despindo sua carranca de militante e deixando sua agenda ou narrativa de lado, parece que não sobra mais nada. Talvez este seja o encanto de se radicalizar em nome de “uma causa”: enquanto o indivíduo se preocupa em militar sobre uma narrativa – e obrigar que outras pessoas façam o mesmo –, não sobra muito tempo para refletir sobre seus próprios conflitos e fracassos pessoais.
Perdi a conta das vezes em que me cobram uma opinião formada sobre determinado assunto ou que eu abrace uma causa. A maturidade, ainda bem, me trouxe o direito de parar e refletir, de escolher não decidir nem me posicionar. Sinceramente, não sou obrigada.