Dias atrás sonhei que calçava os sapatos trocados. O pé direito no esquerdo e o esquerdo no direito e saía caminhando de uma maneira estranha e com dificuldades. Queria caminhar mas acaba tropeçando em tudo e não conseguia ir adiante. Quando acordei, fiquei pensando sobre. É verdade, esta é a sensação que tenho, talvez vários de nós tenhamos já sentido, de que é preciso parar um pouco. Chegamos na metade do ano. O primeiro semestre foi pesado, puxado. Há uma pressa que nos atropela constantemente. Pressa de trabalho, de realização de desejos, de tirar as máscaras, de vencer na vida, de ser feliz, de nos curar das dores rapidamente. Ouço meus pacientes me dizerem isso, repetidamente, perguntando quando é que vão se sentir melhor e se existe um modo mais fácil e rápido de sarar de suas feridas. Eis a pressa que nos faz calçar os sapatos trocados e tentar andar mesmo assim, sem respeitar nossas dores ou impossibilidades. Então me dou conta de que também entro nessa loucura dos minutos desgovernados, dando conta de um tudo. Mas andar de sapatos trocados é a certeza de machucar-se logo de saída e porque mesmo assim, insistimos? Quando foi que deixamos de ser gentis conosco mesmos e de aceitar que para tudo há um tempo?
Circulo pelo jardim e observo as plantas em seu sono longo e sem brotos. Precisamos reaprender com a natureza que também precisamos parar de quando em quando. E sem medo, pois temos muito medo de parar. Como se parar significasse morrer. Ou perder algo. Na verdade, quando não paramos, perdemos a nós mesmos. Nos perdemos de vista. Nos desconectamos de quem somos. Por isso, é preciso parar às vezes, como as plantas fazem no inverno e, dormir. É dormindo que sonhamos com outros tempos, com outras luzes. É quando paramos que conseguimos olhar para dentro e abraçar nosso mundo interior. É claro que já já acordaremos, afinal, também somos primavera. No entanto, é preciso dar tempo para que possamos desejar a volta das flores e viver, respirando e com paciência, as pausas que a vida nos apresenta.
Às vezes somos forçados a parar. Uma doença, a perda de alguém querido, o desemprego, o fim de um amor. Somos sacudidos violentamente e jogados para um canto da casa-corpo, feito bonecas de pano. Não estávamos preparados para parar tudo, não agora. Mas algo mais forte nos atravessa e corta ao meio. E quando paramos percebemos o quanto somos solitários. Talvez todos tenhamos muito medo de sentir a solidão. Talvez porque nunca fomos ensinados a conviver com ela e a descobrir o quanto ela pode ser boa, também. Por isso, cultivo plantas e as rego de quando em quando, cuidando para não matá-las de tanto aguar. Dar água para as plantas é um modo de lembrar de uma vida ou lugar melhor. Quando cuidamos de uma plantinha, damos vida à memória da existência de um paraíso. Um lugar em que podemos ser nós mesmos, compreendendo que tudo acontece a seu tempo e se há algo que parece errado ou fora do tempo, somos nós que perdemos o compasso e precisamos reencontrá-lo.
Parar um pouco de tudo, inclusive de nós mesmos, pode ser assustador, mas é também reconhecer que somos responsáveis pelo nosso próprio exílio. Talvez seja hora de ficar descalço, abraçar quem somos, aceitar que algumas feridas demoram para sarar e que apesar de haver um silêncio na pausa, é justamente nela que podemos ouvir os passarinhos e antever a chegada das cigarras.