Precisamos guardar apenas aquilo que precisa ser salvo. O gemido de amor na madrugada chuvosa e escura, o barulho da pá do pedreiro fechando a sepultura da pessoa amada, o som dos pássaros no clarão do dia depois de uma noite de insônia, o farfalhar das folhas quando o inverno se anuncia, o som das frutas maduras caindo do pé, o arrulhar dos pombos nas esquinas da cidade, uma tarde de verão, uma visita querida. Guardo em mim as luzes do natal que se apagaram, as luzes da rua que se acendem ao anoitecer, o coaxar dos sapos, o jeito que minha mãe fala 'fia' ao telefone. Guardo tudo o que me ensinou sobre o que é noite, dia, amor e escombros. Guardo as nuvens solitárias de verão poetizadas por Mario Quintana, o sabor da hóstia dos tempos em que ia à missa, o sorriso de Bastião, um andarilho que de quando em quando aparecia na porta da casa da infância, o gosto do sorvete no primeiro encontro, o cheiro das camélias numa entrevista distante feita no tempo em que trabalhava na tv. Guardo ainda leituras feitas e esquecidas, poesias relidas, a tábua de uma navio que naufragou, as conchas da praia, as sementes de uma fruta desconhecida, as pedras dos lugares por onde passei. Guardo a água, o vento e o fogo, os mesmos que salvam e destroem florestas. Guardo isso tudo para que a memória se mantenha viva. São as lembranças que nos ensinam que há pessoas que precisamos esquecer, relacionamentos que devem se romper, caminhos novos que precisam ser percorridos. Guardo as alegrias e as dores. Tudo salvo do abandono.
Opinião
Adriana Antunes: decerto que sim
O tempo às vezes se esconde dentro do espaço
Adriana Antunes
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