Quando era criança havia um poço perto de casa. Um poço de água limpa e gelada. Um poço cheio de mistérios e reflexos. Se podia ver nele as ameixas maduras, as bergamotas graúdas, o céu azul, as mágoas que já carregava e o futuro.
Leia mais
Adriana Antunes: que bicho é esse?
Francisco Michielin: o pinheirinho encolheu
Marcos Kirst: um nocaute à barbárie
Eu podia ver ali a pessoa que eu quisesse ser. Cresci ouvindo que não era para chegar perto dele sem um adulto junto e nunca deveria olhar para ele por tempo demais, pois ele me chamaria para dentro dele. É claro que sempre burlei as recomendações e quando podia girava em torno daquele espaço escuro que me refletia como nenhum outro. Eu era só uma criança com nove ou dez anos, tão dura quanto um talo vivo de um gerânio. Acho que meus pais sabiam do meu pequeno delito. O poço ficava atrás de um velho casarão que já não existe mais. Escondido entre uma vegetação robusta e suculenta. Os cheiros se misturavam ao barulho das abelhas que também habitavam este espaço. Ali vi o mundo florescer e apodrecer. Depois virou concreto e hoje, lembrança. A especulação imobiliária acabou com as frutas, com o verde e com o poço. Roubou a casa de animais pequenos como preás e lebres. Foi ali, ao redor daquele poço que eu chorei a morte do meu primeiro cachorro, que entrei em contato com os primeiros desejos de amor e onde fugia da escola. Não me sobrava tempo para estudar, como as crianças de hoje, com a diferença de que eram as alegrias que me ocupavam e tomavam todas as horas do dia. Eu brincava até a noite aparecer e convidar para o jantar. Ali, ao redor daquele poço eu só tinha tempo de crescer. E eu fazia isso para todos os lados. Entre lápis de cor, livros e um pedaço de pão com figada meu corpo e a vida foram se transformando.
Fui uma menina-vegetal, pois vivia camuflada do verde que me cercava e da lama que me sujava. Sim, fui uma criança que comia barro e sempre que podia me metia numa poça de água. Foi assim que descobri de onde vem as crianças, vendo os girinos nascerem. E ver a vida como ela é, me embrulhava o estômago. Viver nos exige profundidade e esperança. O poço hoje virou metáfora de vida. Todo mundo carrega um poço interno e é fundamental se reconhecer nele, para que a gente não apodreça como tudo aquilo que sofre a ação do tempo e perde a qualidade de íntegro.