Por Daisy Vivian, médica veterinária, voluntária do abrigo animal do Parque Germânia e Iguatemi
Eles vieram antes mesmo de serem chamados. Feridos em sua essência, veterinários deixaram suas clínicas e hospitais e até aposentados se propuseram a ajudar. Não podia ser diferente.
Muito mais do que um juramento, ninguém conseguiu ficar imune a milhares de latidos e miados de criaturas tão pequenas mergulhadas em tamanho desespero e terror. O sentimento de desamparo total é um flagelo difícil de ser compreendido, ainda mais por uma espécie tão delicada e indefesa quanto um animal de estimação. E um verdadeiro exército passou a se formar.
Comandados pela solidariedade, soldados de outras outras cidades, incluindo de Santa Catarina, São Paulo e Rio de Janeiro, vieram aumentar nossa capacidade de resposta frente a um verdadeiro cenário de guerra. Veterinários que nunca se viram na vida começaram a trabalhar, e a brasa pegou fogo, calor que aqueceu todos aqueles que se chamavam de colegas e compartilhavam esforços e conhecimentos em prol da causa animal. Tudo seguia um único propósito: salvar o maior número possível daqueles para os quais veterinários dedicam suas vidas, criaturas inocentes que não sucumbiram à fúria da enchente mas que poderiam morrer de fome, de doença ou de frio.
Extremamente sensibilizada, a comunidade veterinária se uniu como nunca na história desse país
Extremamente sensibilizada, a comunidade veterinária se uniu como nunca na história desse país. Também pudera. Em águas gaúchas, a Arca de Noé desembarcou mais de 10 mil animais de uma só vez, todos precisando de cuidados, amparo e amor. Nunca se fez tanto por tantos animais em um espaço de tempo tão curto. Animais saudáveis, fracos e adoecidos, na medida do impossível, estão sendo atendidos. Os que chegaram destroçados podem ter a chance de descansar em um leito hospitalar, com recursos dos próprios profissionais, e receberem muita, mas muita dedicação, fruto de uma corrente gigantesca e inédita que nem mesmo nós, veterinários, sabíamos que tínhamos força para construir.
Não somos um Estado azarado, um Estado castigado pelos céus. Somos apenas os primeiros a sentir na pele a necessidade de um novo modo de pensar. Daqui partirá um recomeço, uma outra maneira de ver a vida. Depois de tudo o que juntos construímos, nosso "jeitinho brasileiro" ganhou um novo verniz, é nossa capacidade de superar grandes desafios com pouco dinheiro. E tem gente solidária nesse mundo! Pessoas boas, muito boas e outras simplesmente extraordinárias que pulverizam amor e solidariedade, o que auxilia a formar aquela sensação de paz e dever cumprido. Parece que finalmente estamos atingimos uma consciência maior.
Nos últimos dias, pouco dormimos. E choramos juntos, discutimos juntos e agradecemos juntos porque veterinário é assim mesmo, somos todos corações moles, mas não somos anjos, não nos chamem assim. Somos apenas a resistência. Para os anjos de quatro patas chegarem a algum lugar, pelo menos 400 mãos têm trabalhado incansavelmente para isso.