Por Julio Cesar Conte, psicanalista, diretor de teatro e dramaturgo
Frente à pandemia, o sujeito se torna aquilo que ele sempre deveria ter sido, caso não estivesse adaptado à vida normal, estruturado em certezas e tomado pela ilusão de segurança. O trabalho da cultura é mitigar a violência intrínseca da natureza. Neste confronto com as forças randômicas do acaso, se estabelecem parâmetros da vida civilizada. Temos produtos da cultura, educação, saúde, arte, economia, direito e uma plêiade de bens imateriais, como solidariedade, empatia e compaixão, sustentando pilares éticos. O mundo estruturado e sólido se desmancha no ar. A brutalidade das coisas – e a violência de um simples vírus – devora vida, derruba bolsa, destrói o cotidiano. Rompida a solidez, se expõe nossa pobreza de recursos. A peste vem e samba na cara da nossa ilusão, revela a identidade atrás da máscara. O coronavírus é mais uma peste entre muitas que a humanidade enfrentou. A diferença é que agora somos nós enfrentando-a e esperamos permanecer vivos para contar. O efeito do vírus (veneno em latim), único organismo vivo acelular, é devastador. Cidades vazias, a vida parada, economia em queda livre e pessoas confinadas. E a morte.
Então surge a humanidade. Pessoas cantando em apartamentos, jogando tênis através de janelas, aulas de ginástica de cima de um terraço. Médicos exauridos, dormindo sobre computadores, jovens fazem compras para idosos, DJ em sacadas, e a solidariedade retoma num movimento de sublimação. Aplausos aos profissionais de saúde! A ética humanitária é o contraveneno do vírus, envolve escolhas e renúncias.
É bom lembrar que a peste desperta também o exato pior em nós
Mas é bom lembrar que a peste desperta também o exato pior em nós. A mentira, a voracidade, a arrogância e a ganância vêm a reboque. A pandemia subverte o sistema, libera o fantasma reprimido em cada um de nós. A peste desperta a solidariedade, a compaixão, a empatia, mas também revela o egoísmo, a paranoia, a ignorância e a brutalidade. Na impossibilidade de pensar o grupo, o sujeito do contágio contém em si o vírus e, ao negar transfere o risco ao outro, a morte. Quando esvazia prateleiras e briga por papel higiênico, está revelando sua confusão entre origem e fim. A mente sucumbe ao egoísmo sem perceber que a morte do outro é o seu próprio óbito.
A qualidade da reação revela o dano emocional do contágio pela peste, a conflituosa identidade do homem atual em sua mais sublime complexidade.