Por Vicente Giaccaglini Ferraro Jr., mestre em Ciência Política pela Higher School of Economics de Moscou e pesquisador do Laboratório de Estudos da Ásia da USP
Passados pouco mais de cem anos da revolução que abalou os rumos da História, a Rússia adentra o século 21 não menos enigmática e controversa.
Para entendermos a Rússia contemporânea, é imprescindível olharmos para os anos 1990, um dos períodos mais turbulentos da história do país. A transição política e a introdução do sistema de mercado, com o desmantelamento da URSS, ocorreu num cenário de profunda crise socioeconômica e desgovernança. Em todo o período, o governo central sofreu intensa pressão por parte das novas elites econômicas (os chamados "oligarcas"), das velhas elites comunistas e de líderes regionais, com demandas autonomistas ou mesmo separatistas.
Somente com a chegada de Putin ao poder, no ano 2000, é que a situação passou a se reverter e esses grupos de pressão foram enfraquecidos politicamente: os oligarcas foram submetidos a um maior controle, o Partido Comunista perdeu a liderança no parlamento para o partido do Kremlin, e os coronéis regionais foram confrontados por um rígido processo de centralização a la Vargas, que contou inclusive com a abolição das eleições para governador. Simultaneamente às reformas centralizadoras, o país presenciou um notável crescimento econômico, estimulado pela valorização do petróleo no mercado internacional. Tais fatores contribuíram para a elevada popularidade de Putin, o enfraquecimento da competição político-eleitoral e o reforço do pressuposto, historicamente enraizado, de que um Estado central forte é condição indispensável para o desenvolvimento russo.
No plano externo, foi marcante o antagonismo nas relações com o Ocidente a partir dos anos 2000, associado à expansão da Otan, bloco até hoje visto pelo país como uma ameaça, e à ingerência política dos EUA e da União Europeia nas suas tradicionais áreas de influência, particularmente no chamado Espaço Pós-Soviético e no Oriente Médio. Os atuais conflitos na Ucrânia e na Síria são o ápice desse antagonismo, dois fronts indiretos com o Ocidente que remontam aos anos 70. Contudo, é um equívoco falar em um "recomeço" da Guerra Fria: a Rússia contemporânea não tem as pretensões globais que a URSS tinha, não confronta ou propõe uma alternativa ao capitalismo, seu orçamento militar é muito inferior ao americano e não conta com os mesmos instrumentos de poder ideológico e econômico que detinha no passado. Ciente dessas limitações e pressionada pelas sanções econômicas do Ocidente, impostas após a incorporação da Crimeia, a diplomacia russa vem buscando promover uma ordem "multipolar", engajando-se em fóruns multilaterais e grupos como os Brics, além de estreitar os laços de cooperação com países asiáticos, especialmente a China. Reerguido como potência, substancial para o equilíbrio de poder no sistema internacional, o país ainda precisa lidar com inúmeros desafios políticos e socioeconômicos.
Em meio às hostilidades na política internacional, a Copa do Mundo representa uma oportunidade de desconstrução dos velhos estereótipos da Guerra Fria e de aproximação entre os países, pelo menos no nível social e cultural. O fato de os americanos liderarem a compra de ingressos entre os estrangeiros, mesmo sem a seleção ter se classificado, é um sinal de esperança.