Daqui a pouco, Porto Alegre estará de aniversário. Como o mobiliário urbano de nossa Capital foi destroçado, talvez possamos aproveitar a data para homenagear quem faz dela uma metrópole menos hostil: as pessoas. Sérgio da Costa Franco, seu maior historiador, já advertia há décadas que, "ao lado dos esplendores da vida citadina, se desenrola um drama permanente de agressões ao homem, seu corpo e sua alma".
Podemos, então, tentar um outro jeito de olhar – para nós mesmos, para os outros e para a cidade. É uma forma de valorizar quem realmente a torna mais autêntica. Basta observarmos em volta de uma maneira que fuja à habitual, presa a visões limitadas de certo ou errado, de bonito ou feio, de doce ou amargo, de isso ou aquilo, de autoridades com suas discurseiras no palanque e claques padronizadas em volta.
Por amor à aniversariante, talvez devêssemos começar por algo simples, mas libertador para o físico e a mente, como uma caminhada. Se tem atividade prazerosa nessa cidade que o historiador descreveu como "um leque muito aberto", é circular por suas ruas. Andar com a determinação de quem busca se livrar de condicionamentos. Logo nos daremos conta de que a capital dos gaúchos pode ter desmoronado, mas suas pessoas seguem de pé – e, entre elas, as que a dignificam.
Neste aniversário, precisamos lembrar, além de "um escritor de província", como se autodefiniu seu conhecedor mais a fundo, de outras figuras que mantêm a freguesia criada em 26 de março pulsando sob as ruínas. Abraham Ponce, por exemplo, o anjo branco como mármore raro, que passa a maior parte de seus dias feito estátua viva, observando nossos filhos crescerem à sua volta, extasiados como os próprios pais.
No inventário de quem realmente importa, tampouco podem faltar figuras como os integrantes das bandas Cartas na Rua e Bluegrass. Esses músicos, que ganham a vida passando o chapéu, já fazem parte da nossa memória coletiva. E não tem, é claro, como deixar de fora nossos índios urbanos. Sim, pois estão aí a nos lembrar de quem são, com suas cestarias de cipós e taquara, com miniaturas de tatus, lagartos e corujas de madeira, com colares de sementes, com suas pulseiras de motivos geométricos, com esse estranho hábito de dançar batendo com os pés no chão.
Em busca de um outro olhar, talvez nos convençamos, finalmente, de que não, não foram os Caingangues, os Guaranis ou os Charruas que invadiram Porto Alegre. Foi o contrário.
A cidade é que se assentou sobre essa confluência magistral de rios, morros e matas desbravados por seus milenares habitantes. Aos nossos ancestrais, assim como aos artistas de rua, devemos gratidão eterna. São os que nos ensinam, na prática, a ver de um outro jeito, como as crianças.
Precisamos reconhecer quem é parte indissociável dessa cidade de geografia privilegiada, junto com os açorianos e todos os outros que chegaram depois. No aniversário de Porto Alegre, vamos reverenciar quem importa, quem a engrandece, quem realmente a faz humana.