Para Eva Sopher, em despedida
Outubro de 1963. Cheguei a Paris, como estudante, na ocasião da morte de Edith Piaf. Ainda deslumbrado com a beleza da cidade, faltava-me vivência para entender-lhe a alma. Recordo, porém, dos mil rostos da cantora na televisão, da sua voz poderosa que se ouvia em todos os bistrôs, em todos os lugares. Naquela cidade universal, acalanto de visitantes e refugiados de todas as pátrias, a morte de Edith Piaf ganhava incrível dimensão. E Paris chorava a sua menina que foi cega e recuperou a visão. Que foi prostituta e purificou o povo com seu canto.
Julho de 1984. O Theatro São Pedro volta a funcionar. Sua ressurreição é mais um sintoma da liberdade que nos chegava aos poucos. Ressurreição mágica feita pelas mãos de Eva Sopher. Cada detalhe desta nova vida tem o sopro de Eva. Em todos os lugares estão as impressões digitais dessa grande mulher.
Eva Sopher, Edith Piaf, Bibi Ferreira. Três mulheres mágicas reunidas num único corpo
ALCY CHEUICHE
Escritor
Entremos no teatro. Porque hoje é sábado. No saguão, o povo olha avidamente todos os detalhes. Olhares de namorado, olhares de proprietário. Os mais jovens se surpreendem com o recheio saboroso do prédio. Construído num tempo em que se investia largamente em cultura. Tempo em que o casario baixo deixava ver daqui o Rio Guaíba e seus veleiros. Tempo dos grandes bigodes e do hábito de honrar cada um dos seus fios.
Subamos as escadas. Placas de bronze recordam velhos feitos teatrais. Um piano de cauda domina o foyer. Quadros de Di Cavalcanti, Glauco Rodrigues, Scliar, embelezam as paredes. Aberta a porta do camarote, o interior do teatro lembra uma miniatura da Ópera de Paris. Piscamos para o imenso lustre e ficamos a contemplar o público que lota plateia e galerias. O primeiro público após 10 anos de silêncio.
Apagam-se as luzes. Durante duas horas, vivemos a maior interpretação da carreira de Bibi, a filha do grande Procópio Ferreira. O avatar de Bibi e Piaf. De forma tão absoluta, tão convincente, como se estivesse em outro corpo a alma errante da cantora imortal. Emocionado até as lágrimas, revejo Paris no dia da morte de Edith Piaf. E entendo afinal toda a mágoa da cidade que a perdeu.
Eva Sopher, Edith Piaf, Bibi Ferreira. Três mulheres mágicas reunidas num único corpo. O corpo do Theatro São Pedro, que acaba de ressuscitar. E que morrerá aos poucos, junto com seu irmão mais novo, se não dermos a eles o mesmo amor que Eva sempre lhes deu.