Quando o grupo Estado Islâmico (EI) invadiu a cidade iraquiana de Mossul há uma década, os jihadistas mataram milhares de pessoas em seu reinado de terror que deixou cicatrizes profundas nos sobreviventes.
Os jihadistas proclamaram em Mossul, em 10 de junho de 2014, seu "califado" da Síria ao Iraque, onde decapitaram, torturaram e escravizaram a população, deixando para trás fossas coletivas quando foram expulsos.
Pouco depois da tomada de Mossul, o líder dos extremistas muçulmanos sunitas, Bakr al Baghdadi, fez a sua primeira aparição pública na Grande Mesquita de al Nuri, na cidade iraquiana.
Os jihadistas proibiram a música, queimaram livros e puniram com apedrejamento àqueles que consideravam terem feito algo errado. Também cortavam as mãos dos supostos ladrões e os dedos dos que fumavam.
O EI foi expulso de Mossul pelas forças iraquianas apoiadas pelos EUA em 2017, deixando um rasto de destruição na cidade.
Os moradores, traumatizados, precisaram reconstruir suas vidas e a cidade. A AFP conversou com três deles.
- O estudante -
Azad Hassan, 29 anos, era um jovem estudante quando o EI chegou e sofreu com a violência. Ele perdeu uma das mãos, além de familiares que nunca mais viu.
Ele se lembra de uma manhã de terror em 2015 diante de uma multidão reunida em uma praça de Mossul. Todos olhavam para ele, seu irmão e dois outros homens. Seu coração batia forte ao ver aquelas pessoas entusiasmadas como em um jogo de futebol.
"Era como se Real Madrid e Barcelona estivessem jogando", lembra, antes de dizer que a situação era muito grave.
"Cortaram nossas mãos" como castigo por uma briga com um jihadista, diz Hassan.
Mas o sofrimento da família não parou por aí. O EI prendeu o irmão de Hassan e três outros parentes, que continuam desaparecidos.
Sem ceder à sede de vingança, Hassan continuou estudando, constituiu família e fez mestrado em literatura árabe.
Agora com um filho de sete anos e uma prótese de mão, tornou-se um defensor das pessoas com deficiência e dos desaparecidos.
"Quiseram me derrotar, mas perderam", diz ele. "Agora vou para a universidade, jogo futebol. Mas a cicatriz ainda está lá".
- O colecionador -
Quando o EI invadiu Mossul, Amar Kheder, dono de uma loja de música, procurou proteger sua amada coleção de música antes que os jihadistas a destruíssem.
Conseguiu que um motorista de caminhão levasse discos de vinil, fitas, rádios e gramofones para amigos seis em Bagdá.
"Escondemos as caixas atrás da comida", diz Kheder, 50 anos. "Foi um alívio".
Certa vez, os jihadistas apareceram para perguntar sobre a música, mas a essa altura ele já havia transformado o local em uma loja de roupas usadas.
Ele decidiu permanecer em Mossul na esperança de que o comando do EI terminasse em poucos meses. No final, passaram-se três anos antes de os jihadistas serem expulsos.
Apesar da destruição da cidade, Kheder recuperou sua loja e conseguiu que o acervo colecionado por sua família durante mais de 50 anos retornasse de Bagdá.
- O juiz -
Dois dias antes de os jihadistas entrarem em Mossul, o juiz Ahmed Hureithi buscou refúgio em Bagdá, mas os extremistas atacaram sua família.
Prenderam seu pai e dois irmãos e depois decapitaram o mais novo, de 17 anos, "com uma espada".
"Publicaram as fotos", lembra Hureithi, 60 anos. "Estavam orgulhosos desses atos".
Anos mais tarde, Hureithi presidiu um tribunal em Bagdá, onde julgou centenas de combatentes pelo terror que causaram. Em 2019, condenou 11 franceses à morte, embora continuem detidos em uma prisão iraquiana.
Hureithi garante que não guarda rancor dos acusados do califado e que agiu "com imparcialidade".
O juiz retornou à ainda devastada Mossul em 2020 e atualmente é vice-presidente do tribunal de apelações da província de Nínive.
* AFP