Por Guilherme Thudium
Doutor em Estudos Estratégicos Internacionais pela UFRGS
Uma das figuras mais influentes do século 20, Henry Kissinger completa cem anos de idade neste sábado (27/5). Assessor de Segurança Nacional e Secretário de Estado dos presidentes norte-americanos Richard Nixon e Gerald Ford, seus conselhos foram procurados de John Kennedy a Donald Trump. Ainda ativo como consultor geopolítico, escreve frequentemente com a ajuda de seus assessores. Sua leitura da ordem mundial traz importante contribuição ao século 21, especialmente no que tange à necessidade de coexistência pacífica entre Estados Unidos e China.
Originário de Fürth, na Baviera, ele e sua família fugiram da Alemanha nazista em 1938 com destino a Nova York. Em 1943, foi convocado para servir na guerra contra o regime que o forçou a deixar seu país de origem. Na região das Ardenas, serviu na 84ª Divisão de Infantaria e, posteriormente, como sargento de contrainteligência. Pela fluência em alemão, diligência e capacidade de liderança, quis o destino que Kissinger retornasse à Alemanha como integrante do Plano Marshall para a reconstrução daquele país.
Nos Estados Unidos, graduou-se em Ciência Política em Harvard, onde também obteve o doutorado aos 31 anos, sob a mentoria de William Yandell Elliott. Sua tese doutoral, Um Mundo Restaurado, tinha um personagem principal: o príncipe austríaco Klemens von Metternich, arquiteto do Congresso de Viena de 1815, e como este confrontou Napoleão Bonaparte. Conforme o escritor Robert Kaplan, a tese de Kissinger, que deu origem ao seu primeiro livro, explica seu pensamento melhor do que qualquer uma de suas memórias ou biografias: para o jovem pesquisador Kissinger, um mundo confrontado pela possibilidade do uso de armas nucleares tinha muito a aprender com Metternich, Bismarck e as grandes potências do século 19.
Kissinger compõe um quadro de influentes acadêmicos germânicos que migraram da Europa aos Estados Unidos no contexto das guerras mundiais do século 20, como foram os casos, também, de Hans Morgenthau, Karl Deutsch e Stanley Hoffmann, dentre outros. Todos eles teriam um impacto significativo sobre o desenvolvimento da academia especializada norte-americana. Nenhum desses nomes, todavia, teria influência maior sobre a política exterior do país do que Henry Kissinger.
Foi o responsável, juntamente com Zhou Enlai, pela histórica reaproximação dos Estados Unidos com a China na década de 1970, durante a Guerra Fria, resultando na readmissão do país como membro permanente do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU). Ao aliar-se a China em contraposição à União Soviética, com a retirada de tropas de Taiwan em 1971, Kissinger inaugurou uma política de ambiguidade estratégica que assegurou a paz no Leste Asiático por 50 anos – mas que agora encontra-se ameaçada.
Sua atuação diplomática ficou marcada, porém, por acusações que envolvem desde a Guerra do Vietnã e crimes de guerra em países do sul e sudeste asiáticos ao regime de Augusto Pinochet no Chile. Há, contudo, um grau de seletividade da parte de alguns de seus críticos ocidentais, que silenciam quanto a outras violações norte-americanas, que sucedem e precedem Kissinger, no Oriente Médio e na própria América Latina.
Os preceitos que guiaram a atuação política de Kissinger são frequentemente associados ao realismo ou à Realpolitik, isto é, uma política pragmática de fins e meios “maquiavélica”. Mas há outra face para essa moeda. Niall Fergusson, na aclamada biografia Kissinger: The Idealist 1923–1968, recupera a juventude e os primados do seu pensamento e da filosofia que o transformariam em um “idealista cínico”.
Na sua obra definitiva, Ordem Mundial (lançada no Brasil pela editora Companhia das Letras), Kissinger defende que a reconstrução do sistema internacional é o grande desafio da nossa época e exige uma estratégia coerente que estabeleça um conceito de ordem mundial no interior de várias regiões, que precisam relacionar-se umas com as outras. A busca por essa ordem deve ser acompanhada pelo reconhecimento da realidade dessas outras regiões e culturas por parte das potências tradicionais desenvolvidas, principalmente os Estados Unidos.
Um profundo conhecedor do mundo não ocidental, Kissinger nos ensina, no auge do seu centenário, que a essência da construção de uma ordem mundial reside no fato de que nenhum país sozinho, nem a China, nem os Estados Unidos, está em condições de preencher isoladamente um papel de liderança. A construção desse novo ordenamento demanda, portanto, um equilíbrio de poder baseado na moderação e na legitimidade, reforçado pelos elementos da cooperação internacional – a face idealista de um corajoso realista.
Saiba mais
- Henry Alfred Kissinger foi conselheiro de relações exteriores de todos os presidentes dos EUA dos anos 1950 ao início da década de 1980, tendo sido secretário de Estado (cargo equivalente ao de ministro das Relações Exteriores no Brasil) entre 1969 e 1975.
- A enorme influência que exerceu no período o coloca no centro de fatos como o cessar fogo na Guerra do Vietnã e a participação dos EUA nos golpes que instauraram as ditaduras militares na América Latina.
- Em 1973, ele e o vietnamita Le Duc Tho foram agraciados com o Nobel da Paz, o que gerou protestos – Tho recusou-se a receber o prêmio junto a Kissinger. Entre seus principais detratores estão Christopher Hitchens, que escreveu The Trial of Henry Kissinger, e Daniel Ellsberg, autor de Secrets, sobre os bastidores da Guerra do Vietnã.
- Entre os principais livros que publicou está Ordem Mundial (2014). Há diversas biografias de Kissinger, inclusive em português, como, por exemplo, A Sombra de Kissinger: O Longo Alcance do Mais Controverso Estadista Americano (ed. Anfiteatro, 2017), de Greg Grandin.