Luiz Marques (*)
Logo após o encerramento da Guerra Fria, Samuel Huntington, em O Choque de Civilizações (editora Objetiva), projetou a futura política externa dos Estados Unidos. Para o cientista político de Harvard, as desavenças internacionais não mais resultariam de embates ideológicos ou econômicos: “As grandes divisões entre a humanidade e a fonte principal do conflito serão culturais. Estados-nação continuarão a ser atores poderosos nas questões mundiais, mas os conflitos da política global ocorrerão entre nações e grupos de diferentes civilizações”. Em inglês, anunciou a nova Guerra Quente.
No espectro de “sete ou oito civilizações”, Huntington destacou o duelo Islã vs. Ocidente. Os ataques em 11 de setembro de 2001 ao World Trade Center e ao Pentágono, por militantes enlouquecidos e patologicamente motivados, foram apresentados à opinião pública como prova do acerto da previsão. Chefes de Estado repercutiram o vínculo entre a projeção teórica, então classificada de visionária, e o ato cirúrgico que destruiu as Torres Gêmeas. Berlusconi chegou ao cúmulo de dizer que “nós” temos Mozart e “eles” não. Poderia ter sido parcimonioso. Nós tivemos o ariano cristão Anders Breivik que matou dezenas de adolescentes e feriu outras tantas na Noruega; os discípulos morticidas do reverendo Jim Jones na Guiana; e o maluco Mark Chapman que assassinou John Lennon defronte o prédio em que o ex-beatle morava em Nova York. Já eles tiveram três em um, na figura do terrorista muçulmano Osama bin Laden. Mas o cotejo só revelaria o óbvio: o fanatismo dispara em qualquer direção. O atentado plantou o ódio e a raiva nos corações, ao romper o último limite da razão. Mas não confirmou a reducionista profecia huntingtoniana.
O crítico literário e ativista da causa Palestina Edward Said, em Política e Cultura (Boitempo), lembra que o Ocidente e o Islã não estão fechados em si mesmos. Ambos possuem “uma história de trocas, fertilização mútua, compartilhamento”. Daí resultaram configurações simbólicas permeáveis às influências exógenas – de fora para dentro. Considerar homogêneas as culturas coexistentes no âmbito de cada paradigma é um erro. “Quão inadequados são os rótulos e as generalizações”, lamenta Said. É dever ético dos intelectuais tratar o complexo como tal, de modo a não disseminar uma caricatura totalitária do Islã. No próprio islamismo acha-se uma condenação de largo alcance à direita religiosa, representada pela tirania do Talibã, que impõe regras à intimidade das pessoas sob uma ordem social reduzida a um código penal, despojada de seu humanismo, sua estética e sua devoção espiritual.
O fundamentalismo gera procedimentos que distorcem a religião, degradam a tradição e deturpam a sociabilidade. Onde quer que ocorra. A instrumentalização para fins escusos é obra do pensamento unidimensional – seja católico, evangélico ou islamita. Thomas Hobbes, o filósofo que colocou o medo no núcleo da reflexão política, ajuda a decodificar a demonização dos bolsões islâmicos que se alastram pela Europa central. A diáspora desperta o medo da regressão ao passado remoto, por evocar as antigas e temíveis conquistas árabe-islâmicas. Qual a novela de ficção científica A Guerra do Mundos (1897), de H. G. Wells, sobre a invasão da Terra por marcianos, o choque de civilizações é fruto de uma imaginação fértil. Se conforta o orgulho ferido da grande potência em crise, nem por isso contribui para a compreensão das interdependências de nosso tempo.
O ex-presidente Donald Trump foi pragmático quando ocupou a Casa Branca. Elegeu inimigos hispanófonos: México, com o muro na fronteira para barrar a imigração ilegal, justificativa para a perda da massa salarial norte-americana frente ao PIB, e Cuba, com a intensificação do embargo comercial para castigar a simbólica ilha, cuja dignidade desafia o american way of life. E também a língua mandarim, da China, em desagravo pela derrota industrial e tecnológica na corrida pela fabricação de celulares, carros elétricos, energias renováveis e telecomunicações de 5° geração (inteligência artificial).
Em desvantagem na concorrência com o dragão e com índices baixos nas pesquisas de popularidade, o presidente Joe Biden (EUA) e o primeiro-ministro Boris Johnson (Reino Unido) mantêm a agenda de hostilidades, ressuscitando o russo entre os idiomas inconfiáveis para recusar um mundo mais democrático, multipolar. Represálias por meio do comércio internacional agora exprimem as ameaças bélicas que pairam sobre o Leste Europeu, no conflito geopolítico forçado pela Otan, que não interessa à Ucrânia e à Rússia. O filme é um déjà-vu da disputa por mercados num cenário de embate militar.
(*) Docente de Ciência Política na UFRGS e ex-secretário de Estado da Cultura do RS