O papa Francisco denunciou as desigualdades e o "vírus do individualismo" em sua nova encíclica, com o título "Fratelli tutti" (Todos irmãos) e divulgada neste domingo (4), na qual pede o fim "do dogma neoliberal" e defende a fraternidade "com atos e não apenas com palavras".
Depois da encíclica "Lumen Fidei" (A Luz da Fé), escrita a quatro mãos com seu antecessor, Bento XVI, e "Laudato Sí", em defesa da Mãe Terra, escrita em 2015, o papa produziu agora um texto que deve servir de guia espiritual para os católicos, face aos momentos inéditos que a humanidade atravessa.
Em sua terceira encíclica, de 84 páginas, o pontífice argentino retoma os temas sociais abordados ao longo de sete anos e meio de pontificado e reflete sobre um mundo afetado pelas consequências da pandemia de coronavírus.
Em um momento do texto, ao falar de como diferentes culturas devem conviver, Francisco citou o compositor, poeta e diplomata brasileiro Vinicius de Moraes. Ele fez referência à canção Samba da Bênção: "A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida". O contexto era de um incentivo a uma cultura do encontro, em que todos podem aprender algo e na qual ninguém é inútil.
— Isto implica incluir as periferias. Quem vive nelas tem outro ponto de vista, vê aspetos da realidade que não se descobrem a partir dos centros de poder onde se tomam as decisões mais determinantes — defendeu.
No documento, escrito em espanhol e que permanecerá com o título em italiano em todos os idiomas, Francisco condena o "dogma neoliberal", um "pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas diante de qualquer desafio que se apresente".
"A especulação financeira com o lucro fácil como objetivo fundamental continua provocando estragos", adverte no documento, antes de acrescentar que "o vírus do individualismo radical é o vírus mais difícil de derrotar".
— É possível aceitar o desafio de sonhar e pensar em outra humanidade. É possível desejar um planeta que assegure terra, teto e trabalho para todos— destaca o pontífice, um pedido que fez em várias oportunidades durante suas viagens aos países mais pobres e esquecidos.
Em sua nova encíclica, Francisco reivindica o direito de todo ser humano de viver "com dignidade e desenvolver-se plenamente" e recorda que a pandemia evidenciou a incapacidade dos dirigentes de atuar em conjunto em um mundo falsamente globalizado.
— A fragilidade dos sistemas mundiais diante das pandemias evidenciou que nem tudo se resolve com a liberdade de mercado — completa — Vimos o que aconteceu com as pessoas mais velhas em alguns lugares do mundo por causa do coronavírus. Não tinham que morrer assim (...) cruelmente descartados — lamenta o pontífice.
Em sua encíclica mais social, depois de reiterar sua oposição à "cultura dos muros", Francisco pede uma nova ética nas relações internacionais:
— Uma sociedade fraternal será aquela que conseguir promover a educação para o diálogo com o objetivo de derrotar o 'vírus do individualismo radical' e permitir que todos deem o melhor de si mesmos —.
O papa também defende a reforma estrutural da Organização das Nações Unidas, reitera a total oposição da Igreja à pena de morte e comenta a questão da dívida externa dos países que "deve ser paga, mas sem prejuízo ao crescimento e subsistência dos países mais pobres".
— Hoje afirmamos com clareza que a pena de morte é inadmissível e a Igreja se compromete com determinação para propor que seja abolida em todo o mundo — escreveu.
No documento, o pontífice também pede o diálogo e defende novos caminhos para alcançar a reconciliação entre os povos.
—Não é possível decretar uma 'reconciliação geral' com a pretensão de fechar por decreto as feridas ou cobrir as injustiças com um manto de esquecimento —, ressalta Francisco, que cita o Holocausto, os bombardeios em Hiroshima e Nagasaki, a perseguições, o tráfico de escravos e os massacres étnicos.
No texto, o papa afirma que "muitos ateus cumprem melhor a vontade de Deus que muitos crentes", em uma espécie de advertência aos muitos políticos de todos os continentes que se sentem "autorizados por sua fé a apoiar diversas formas de nacionalismos fechados e violentos, atitudes xenófobas, desprezos ou inclusive maus-tratos aos que são diferentes", lamenta.