A Turquia começou a receber nesta sexta (12) os primeiros equipamentos do poderoso sistema de defesa antiaérea russo S-400, contrariando anos de pressão norte-americana contra o negócio e colocando em xeque a própria presença do país islâmico na Otan (aliança militar ocidental).
Um avião de carga russo entregou os primeiros componentes do S-400. São lançadores de mísseis, radares, caminhões de apoio e os foguetes em si a serem entregues em quantidade não revelada, mas num negócio que Rússia disse ser de US$ 2,5 bilhões (quase R$ 10 bilhões).
O material foi desembarcado num lugar simbólico: a base de Murted, que foi renomeada após ser a uma das principais unidades militares a sublevar-se contra o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, em 2016.
O golpe, diz o governo, foi fomentado desde os EUA por um clériigo muçulmano exilado, Fethullah Gülen. A recusa de Trump em extraditar o religioso está na base das discordâncias atuais, além do ressentimento pelo fato de que a União Europeia nunca considerou de fato uma adesão turca por sua identidade islâmica.
Os EUA endureceram, ao longo deste ano, a posição sobre a compra do material russo. O Pentágono alega que, além de ser incompatível com os sistemas da Otan e a interoperabilidade ser uma cláusula pétrea da aliança, o S-400 terá aviões ocidentais a seu alcance — podendo, por exemplo, testar o quão "invisíveis" são caças como o F-35, e de alguma forma a informação poderia chegar a Moscou.
Assim, os americanos deram ultimatos seguidos a Ancara. Vetou a entrega de F-35 encomendados pelos turcos, o que aliás joga luz sobre outro aspecto da disputa: a Turquia é um dos nove países que faz peças para o mais avançado avião militar americano, e sedia uma fábrica vital que faz desde 2002 partes da fuselagem e da turbina do aparelho.
Quando os EUA anunciaram a sanção, Ancara divulgou que iria produzir um avião próprio, exibindo uma maquete muito semelhante ao F-35. É um blefe: o mais provável, caso a relação se quebre de vez, é que o país venha a se equipar com os novos Sukhoi-57 russos. O plano turco é substituir toda sua frota de 260 F-16 e 20 antigos F-4.
Só que isso implicaria, na prática, um rompimento da relação militar da Turquia com o Ocidente. Países já se distanciaram da Otan antes, como a França durante anos, mas os turcos são um ativo único: estão posicionados no Oriente Médio. A base da Otan em Incirlik participou de todas as grandes operações no Golfo desde 1991 e tem armazenadas bombas nucleares de uso tático.
Politicamente, o governo de Vladimir Putin está colhendo uma enorme vitória sobre o Ocidente, novamente em cima de um vácuo deixado pelos americanos — o próprio Trump já disse que "a culpa não é do Erdogan" ao comentar anos de recusa ocidental em fornecer sistemas antiaéreos sofisticados para os turcos.
Erdogan, um autocrata ao estilo de Putin, se estranhou com o russo no início da intervenção do Kremlin na guerra civil síria. Um caça russo foi abatido por supostamente entrar em espaço aéreo turco. Mas os países se reaproximaram com a perda de influência americana na região e bolaram, juntos com o Irã, uma estratégia para tentar encerrar o conflito.
Se o apoio decisivo à ditadura síria já tinha recolocado Moscou no mapa político do Oriente Médio, fazer a Turquia entrar em rota de ruptura com a Otan é um feito ainda maior.
Além disso, Putin mantém uma aliança tática com os dois principais rivais muçulmanos na região: Irã, com quem atua na Síria, e Arábia Saudita, com quem trabalha junto para tentar manter os preços do petróleo em níveis aceitáveis a ambos. Ele também apoia rebeldes que ameaçam tomar o poder na Líbia e formou uma aliança com a ditadura militar egípcia, enquanto preserva bons laços com o inimigo de todos, Israel.
A entrega dos S-400 coloca a Turquia na mira de uma lei de 2017 que pede sanções a qualquer país que faça negócios militares significativos com a Rússia. A negociação entre Moscou e Ancara começou em 2016, sempre sob fogo americano, mas agora Trump terá de medir se vale a pena esticar a corda de vez com os turcos.
O S-400 é uma variante avançada da mais poderosa família de baterias antiaéreas de longo alcance do mundo. Seu irmão mais velho, o S-300, é operado por vários países. O mais novo, o S-500, está em testes na Rússia. O S-400 pode atingir alvos a até 400 km de distância, com altitudes de até 35 km — aeronaves ou mísseis.